Eis que acordo hoje, dia 24 de fevereiro, e sou informada pelo jornal que existe uma nova guerra no mundo. Minha amiga conta que o marido, ucraniano, passou a madrugada ao telefone com primos, numa conversa sobre os melhores momentos da infância, em tom de despedida. O que eu sinto? Uma tristeza distante, um pesar controlado e comedido, uma dor que não se compara à que eu senti semana passada, em uma das minhas crises de enxaqueca.
A primeira coisa que penso, antes de o meu superego agir, é que "isso não tem nada a ver comigo". Tenho vontade de escrever no Twitter: "Até quando vamos aguentar a iminência do fim da humanidade, no sentido amplo da expressão?". A verdade? Eu estava tomando um suco verde enquanto escrevia essas palavras. Preciso dizer que me importo quando, de fato, se não houver ameaça de bomba nuclear, eu não me importo taaaaanto assim. Então apago, morta de vergonha.
Na minha ignorância sobre política e no meu individualismo de branca da zona oeste paulistana que sofre pelos acontecimentos enquanto lê o jornal deitada no sofá e embaixo do ar-condicionado, confesso que tentei me acalmar com artigos de especialistas garantindo que não há a menor chance de uma terceira guerra mundial. O que você mais quer saber é se sua família corre algum perigo. Até aí normal. Será que é mesmo normal?
Para piorar, não agimos assim só quando é no Afeganistão, na Ucrânia ou em algum país africano.
Eu não canso de pensar que o quiosque em que espancaram, amarraram e assassinaram Moïse seguiu funcionando normalmente enquanto o corpo dele estava no chão. Ontem pensei isso fazendo esteira. Esteira? Meu pensamento tem algum valor então?
Acabei de entrevistar Anielle Franco para o meu podcast, e ela me contou que no dia em que mataram sua irmã, a vereadora Marielle Franco, ela recebeu, no grupo de WhatsApp do bairro onde mora, a foto do rosto de Marielle desfigurado por cinco tiros. Foi demitida, logo após essa ameaça, das três escolas em que dava aula de inglês para adolescentes. Os pais dos seus alunos cuspiam no chão quando ela passava. Foram anos tentando contar a verdadeira história da irmã, porque a fake news de que Marielle era "mulher de traficante" já estava prontinha para ganhar as redes antes mesmo de encomendarem a morte dela. Anielle é ofendida diariamente, tratada como "preta vagabunda atrevida", porque não ficou quieta na favela, tem três mestrados e luta por sua família e por outras mulheres pretas. Em suas redes sociais, atura semanalmente haters chamando a sua irmã de "peneira".
Eu achava que a história de Anielle e de Marielle estava longe de mim. Claro que sofri na época, fiquei indignada, fiz meus posts, assisti ao documentário, escrevi sobre isso. Mas perdi alguma noite inteira de sono? Não.
Acontece que agora conheci pessoalmente Anielle, a entrevistei, me apaixonei e senti uma vontade profunda de, quem sabe um dia, ter a sorte de estar próxima dela. Ser amiga. Conhecer sua mãe. Conhecer Luyara, sua sobrinha. E poder, finalmente, virar um ser humano, e não uma replicadora de tuítes progressistas.
Quantos de nós, mesmo sem admitir, acham "saudável" pensar –para não pirar ou apenas para seguir tranquilo eu seu lugar de privilégio– nos casos de Moïse, Marielle e Anielle como "algo distante", da favela, algo que acontece bem longe, em outro país, em outra língua. Até quando vamos pensar na dor de um país gigante, de maioria preta e pobre, como se eles estivessem lá na Ucrânia? E olha que já seríamos bem cruéis e boçais se pensássemos que a própria Ucrânia fica láááá na Ucrânia.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.