quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

O 'making off' do 'pout-pourri'


Quem hoje sofre ao ver a língua do dia a dia poluída por bijuterias anglófilas como "enderecei o problema", "é sobre isso" e "call" talvez não saiba que, não faz tanto tempo, era da França que importávamos nossos brilharecos verbais.

Até ali pela altura dos anos 1970, era comum abrir uma revista ou jornal brasileiro e ler uma frase como esta: "O frisson causado pelo derrière charmant daquela cocotinha faux maigre entrevista na plage de Ipanema levou o austero pai de família a cometer um típico faux pas –e pá!".

Exagero um pouco? Ça va sans dire, ou melhor, é claro que sim! C’est la vie dos cronistas, ué. Mas me lembro bem: quando eu estava aprendendo a ler as palavras e o mundo, sem alguma bagagem de francofonia de orelhada não se ia longe.

Uma francofonia muitas vezes détraqué, escangalhada. Nosso jornalismo musical, por exemplo, não conseguia sustentar três compassos sem se estabacar na expressão "pout-pourri" –que em francês nunca existiu, uma vez que "pout" não chegou a se constituir como palavra na língua de Saussure.

Tem sido cada vez mais raro, mas ainda acontece de toparmos com o fantasma dessa bobagem por aí. Com o sentido de mistura de diversos temas musicais num único número –"medley" em inglês–, a expressão correta é "pot-pourri". Trata-se de uma tradução do espanhol "olla podrida", literalmente panela podre, quer dizer, mistureba de carnes e legumes, cozidão.

Por que o putrefato "pout-pourri" se consagrou na língua brasileira é um mistério que demandaria investigação específica. A duplicação do contorno vocálico de "pourri" parece uma boa hipótese inicial.

Óbvio que a ignorância sobre a língua que assim se demonstra admirar é inseparável de leituras criativas como essa. Tanto no mecanismo do erro quanto em sua consagração, algo semelhante ocorreria décadas mais tarde com a expressão inglesa "making of".

A crença na superioridade intrínseca das consoantes dobradas parece estar por trás da exuberante versão brasileira "making off", praticamente a única que se encontra em nossos textos.

Como "pout-pourri" em francês, "making off" não existe em inglês –ou até existe, mas com o sentido inteiramente diverso de fuga, escapada. Boa senha para fugir dele. Em todo caso, o critério da correção acaba dizendo pouco sobre o fenômeno dos atavios estrangeiristas.

Uma conclusão a que chegamos ao examinar mais de perto a francofilia recente de nossa imprensa é que ela representava uma tentativa meio desajeitada de democratizar o acesso a um conhecimento que, poucas décadas antes, fazia questão de excluir na cara dura a massa dos leitores.

Com todo o seu pedantismo e toda a sua jequice, salpicar francesices no texto como quem tempera generosamente um cassoulet já era, na minha infância, um avanço inclusivo.

A geração anterior de intelectuais brasileiros –inclusive os mais progressistas– gostava mesmo era de citar estrofes inteiras de Baudelaire sem tradução. Traduzir para quê? Falar francês, privilégio de poucos, era o pedágio mínimo para entrar no papo. Classismo sempre foi coisa nossa.

Como se sabe, aquela onda francófila foi perdendo o élan até se quebrar, antes mesmo do fin de siècle, contra o imenso rochedo anglófilo que hoje é dominante na paisagem.

Agora o dernier cri –o último grito, aquilo que há de mais quente– é endereçar um problema no fim do dia. Hélas, vai passar também.


Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo

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