Indo do Parc Güell pro bairro gótico, no meio do Passeio de Gràcia, sugeri um desvio. Queria mostrar à Julia a Plaza del Sol, meu velho quintal em Barcelona.
Tomei cerveja ali quase todos os fins de semana de 2002. Assisti ali a um teatro de fantoches patafísico e a um curdo tocando alaúde. Fiquei amigo do curdo –os fantoches não me deram bola.
Ali a Phydia ia trabalhar de skate, como garçonete, enquanto juntava um dinheiro para se mudar da nossa sala– a república "lliure" da Carrer Aribau 139 4A, que chegou a hospedar até sete brasileiros simultaneamente, para desespero do gentil vizinho de baixo, que nas noites mais barulhentas esmurrava a porta e insistia em me ensinar, de graça, todos os palavrões da língua catalã.
Na Plaza del Sol, principalmente, ficávamos de papo pro ar, singrando as tardes infinitas dos 20 e poucos anos e ouvindo Manu Chao sob o doce aroma da carburação de especiarias florais oriundas das arábias.
Saindo do Passeio de Gràcia eu disse pra mim mesmo –como um seguro-decepção, acho –que provavelmente a Plaza del Sol tinha mudado muito, não devia ter mais nada a ver com o que era antes. Viramos à direita, um quarteirão, outro, comecei a ouvir uma música, a sentir aquele cheiro e –¡óstia! (obrigado, vizinho)– lá estava ela, cheia de jovens, com show.
Vinte anos tinham se passado e a praça seguia tendo exatamente o mesmo significado na cidade, o mesmo casting, a mesma dramaturgia –só umas pequenas mudanças no figurino, concessões naturais à passagem do tempo.
Que diálogo misterioso é esse entre as pedras e as pessoas? Como se cada pedaço de chão tivesse sido imantado com a intenção dos que o pisaram antes. Aqui, trabalho. Aqui, boêmia. Aqui, jovens. Aqui... (Coisas que a gente faz aqui e não admite ali). Por décadas. Por séculos.
O conforto ao pensar nessa transcendência urbana me veio com um travo: moro em São Paulo, cidade em que tudo parece tão construção e já é tão ruína que o cara põe na frente da quitanda "Desde 2011" como se fosse um triunfo –e é.
A urbanização de São Paulo e do Rio nos últimos 150 anos foi: "tira os pobres daí, joga os pobres pra lá, abre um cercadinho VIP onde estavam os pobres. Depois, quando der problema lá com os pobres, a gente culpa os pobres e vê como faz".
Da grande reforma do Pereira Passos, no Rio, em 1903, à nova Faria Lima do Maluf, 90 anos depois, a lógica foi a mesma.
Nosso atraso mal travestido de avanço entortou o "liberalismo" até (quase) encobrir seus privilégios. Agora tem torturado o termo "conservadorismo" para que assuma crimes que não cometeu. O que o "conservador" brasileiro conserva além da babá de branco e do medo de ser gay?
São os ditos "conservadores" que desmontam órgãos de regulamentação urbana e preservação histórica como o Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico) e o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), desmantelam o Ibama, fazem lobby pra subir prédio em qualquer canto e constroem condomínio em Área de Proteção Ambiental. Seria lindo se a direita brasileira lutasse pelo capitalismo e os conservadores pelo conservadorismo.
O rico brasileiro é um miserável e não sabe. Preso entre colunas jônicas e concertinas, acha que é "de primeiro mundo" se entupir de Prada & wagyu; jamais vai entender a alegria civil de frequentar uma praça.
Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo.
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