Sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, José Miguel Wisnik escreveu para a Ilustrada Ilustríssima deste domingo um artigo que, mais uma vez, é um prodígio de clareza, inteligência e, não sei, capacidade de ligar os pontos.
A "polêmica" (ô palavrinha chata) se estabeleceu em torno do caráter "elitista" e "paulistocêntrico" do modernismo; Wisnik lembra que Villa-Lobos não era nenhum "paulista", que ninguém foi mais "nacional" do que Mário de Andrade e que, com todas as suas contradições, Oswald de Andrade tem tudo a ver com os movimentos que, hoje, contestam o autoritarismo, a burrice e o racismo predominantes no Brasil.
Isso é só o básico da argumentação, que vai muito mais longe; recomendo muitíssimo.
Fico pensando, contudo, nas razões que movem tantas críticas à "paulistice" da coisa. Talvez a Semana de Arte Moderna tenha virado uma espécie de bode expiatório.
Em primeiro lugar, está em causa um fator que, como paulista, acho inegável: a arrogância de muitos dos meus conterrâneos. O preconceito contra nordestinos é total —mas não só: o carioca é visto com feroz desconfiança e boa dose de inveja, enquanto o gaúcho é fonte de piada (e, de minha parte, algum medo também).
Claro que, até aí, os paulistas recebem o troco. Foi Nelson Rodrigues, acho, quem disse não existir pior forma de solidão do que a companhia de um paulista. No geral, concordo com ele —e mais de uma vez me senti o alvo justificado dessa crítica.
Eu tinha menos de 30 anos, e como jornalista da Folha fui convidado a uma viagem de turismo em companhia de velhos craques da imprensa carioca.
Ainda sou, na maior parte das vezes, um sujeito certinho, tímido, bem-comportado. Era mais ainda em 1987. Ganhei o apelido de "diácono", e bastava eu me aproximar da roda dos bambambãs para que o ambiente gelasse.
Além disso, a Folha fazia parte do mesmo pacote que incluía a hegemonia tucana nos anos Fernando Henrique e o peso acadêmico da USP.
Brizolismo, nacionalismo, desenvolvimentismo, populismo —esse conjunto era contraposto ao mantra da modernidade neoliberal, do "cosmopolitismo" importador de vinhos e patês, do encanto pseudoweberiano pelo culto da prosperidade das igrejas evangélicas.
Isso tudo vinha com sotaque paulista e ares de "dono da verdade"; o fisiologismo e a corrupção eram vistos como atraso "nordestino" nas terras de Quércia e de Maluf.
Existe também, nos debates sobre 1922, o tédio das comemorações —de que participo integralmente. Nada mais chato que cultuar a iconoclastia, e ritualizar os gestos da vanguarda.
E aqui a discussão entra no campo da literatura propriamente dita. Talvez o que esteja por trás de muita antipatia face à Semana de Arte Moderna tenha a ver com os caminhos, muito diferentes, que a poesia e a prosa seguiram no Brasil.
Os poetas de 1910 —Olavo Bilac e companhia— ficaram antiquíssimos. Os pintores também. A Semana de 22 virou aquela página. Só que na prosa de ficção a ruptura não foi geral. Claro que Guimarães Rosa e Clarice Lispector foram moderníssimos. Mas o romance regionalista e a prosa urbana, carioca a valer, têm uma linha de continuidade mais forte com o que se chamou de "pré-modernismo", essa coisa sem semana.
Lima Barreto, João do Rio, Simões Lopes Neto, Franklin Távora, Euclides da Cunha: natural que, especialmente para quem não é paulista, a "descoberta" de um Brasil mais profundo não tenha precisado dos modernistas.
E o "pré-modernismo" talvez não tenha morrido em 1922. O realismo de João Antonio (paulistíssimo, aliás), não seria "pré-modernista" de certa forma? A melhor prosa de Carlos Heitor Cony guarda um perfume do "fin-de-siècle" vivido pelo seu pai. Nos seus primeiros contos, Rubem Fonseca era um flaubertiano de porta de cadeia.
O encantamento com a cultura americana (pop, cult, pulp, beat, o que seja) atualizou esse nosso "pré-modernismo", do mesmo modo que a vanguarda francesa foi determinante para a linguagem dos modernistas —"elitistas", portanto; "ça va sans dire".
Embora a questão tenha muito a ver com o inegável "paulistocentrismo" do Brasil cotidiano, e com a irritação que provoca, no fim talvez o debate esteja determinado, como tudo, pelo que acontece fora de nossas fronteiras: é Paris contra Nova York e Los Angeles, a alta cultura contra o "middle-brow", James Joyce contra Tom Wolfe. Mário e Oswald de Andrade entraram nisso sem saber.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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