É uma humilhação constante. O herói entra no complexo militar do bandido e alguém lhe diz, pelo auricular: os reféns estão na ala leste. Imediatamente, o herói dirige-se para leste. Acontece a toda a hora, nos filmes.
Não são apenas heróis com treino militar. Vítimas, perdidas na floresta depois de fugirem de uma masmorra, conseguem telefonar para a polícia, que lhes diz: dirija-se para norte. E elas, sem hesitação, dirigem-se para norte. O que só pode significar uma coisa: todo o mundo sabe onde ficam os pontos cardeais menos eu.
Eu teria dificuldade em dirigir-me para a zona leste da minha própria casa. Agora que penso nisso, não é assim tão difícil. Basta lembrar-me do lugar em que o sol nasce. Mas as vítimas nem sempre têm a sorte de fugir durante o dia. E o herói também costuma introduzir-se no complexo militar do bandido durante a noite, em terras onde nunca esteve antes. Às vezes, dentro do covil subterrâneo do gênio do mal, perde-se em labirintos e leva pancadas na cabeça. Depois, dizem-lhe para ir para leste e ele, sem bússola, vai mesmo.
Eu vejo os filmes no sofá e às vezes perco-me a ir buscar uma cerveja à cozinha (que, descobri agora, fica a norte da sala). Há palavras para definir pessoas como eu. Desorientado significa, literalmente, aquele que não sabe onde o leste fica. Desnorteado acaba por significar o mesmo, porque quem não tem norte também não encontra o leste.
É curioso notar, no entanto, que os pontos cardeais não têm todos a mesma importância. Não se diz de ninguém que é "dessulado". Não saber onde fica o sul parece ser aceitável. E "desocidentado" é termo que também continua à espera de ser cunhado. Parece-me revelador, embora não saiba de quê.
Um geofísico californiano diz que a capacidade de saber sempre onde fica o norte seria o nosso sexto sentido, que os humanos foram perdendo quando a necessidade de se orientarem deixou de ser essencial.
Se isso é verdade, logicamente, quanto menos orientados formos, mais evoluídos seremos. Nesse caso, eu seria mesmo muito sofisticado. Portanto, parece-me evidente que essa teoria não está correta.
Talvez eu devesse ir à Califórnia avisar o cientista. De avião, claro. Se for a pé, o mais provável é ir parar à China.
Texto de Ricardo Araújo Pereira, na Folha de São Paulo.
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