domingo, 20 de fevereiro de 2022

Ser enviada ao espaço não abala o senso prático de mulheres racionais


O espaço começa onde a atmosfera da Terra termina: a cem quilômetros do nível do mar. Imagine, então, o que é estar lá em cima, completamente só, e perceber que sua cápsula espacial tá sem freio. Subindo e subindo, rumo ao infinito.

"Eu também não tinha uma escova de dentes a bordo", disse Valentina Tereshkova, primeira mulher enviada ao cosmo. "Mas tudo bem, esse nem era o maior dos meus problemas."

Com ou sem gravidade, na rua, na chuva, na fazenda ou no Cinturão de Órion, poucas coisas abalam o senso prático de uma mulher racional. E talvez seja para lembrar disso que mantenho, numa parede da minha casa, o retrato dessa heroína russa que completará 85 anos daqui a alguns dias.

Valentina começou pé no chão. Bateu ponto em fábrica de pneus e foi tecelã, até que ingressou no paraquedismo e saltou para a glória no programa espacial soviético.

Em 1963, Nikita Khruschov apostava corrida com John F. Kennedy e a URSS decidiu botar uma mulher em órbita. Os pré-requisitos: ser jovem e ter menos de 1,70 m, pois a Vostok 6 era do tamanho de um Fusca. Dentre 5.000 candidatas, as finalistas contavam com uma engenheira, uma matemática, uma professora e uma datilógrafa, mas Tereshkova ganhou a vaga na base do carisma e da experiência com saltos. Tudo parecia ideal para que se fizesse história, tal como Iuri Gagárin dois anos antes. Chato é que quase deu ruim.

Zunir um ser vivo para fora do planeta jamais será moleza. Moscas de fruta tornaram-se as primeiras cobaias, em 1947. Teve também Laika, a cadelinha que em 1957 encontrou seu trágico destino nas estrelas. Quando Tereshkova foi ali rapidinho, "ver uma coisa no universo e já volto", havia um know-how sobre idas e vindas cósmicas, mas ainda assim ficou puxado para ela.uxado.

Usando o codinome Chaika —gaivota, em russo—, a cosmonauta viajou agarrada a um manual com mais de cem páginas. A fim de driblar a espionagem dos EUA, sua comunicação era tão secreta que se dava por códigos que relacionavam perrengues (como inchaços e vontade de fazer xixi no espaço) a nomes de frutas e plantas.

Se ela ficasse nauseada, a palavra-chave era "cana-de-açúcar". Menstruada, "framboesa". E em caso de aterrissagem na água, a saída era gritar "samambaia" —muito a calhar, inclusive, quando o algoritmo de pouso deu pane, Tereshkova se ejetou e quase caiu num lago.

Aos 26 anos, depois de 71 horas e 48 voltas ao redor da Terra, chegou sã e salva, mas irritando a chefia. Tudo porque em vez de se submeter a testes e aferições pós-reentrada, a gaivota soviética foi filar uma janta oferecida por aldeões que vibravam pelo seu feito.

Hoje, Valentina possui não só um legado de feminismo e pioneirismo, mas também uma cratera lunar e um asteroide batizados em sua homenagem, além do humilde retratinho aqui em casa. E em vez da aposentadoria, disse que prefere visitar Marte. Tá certíssima. Apenas o sonho define a última fronteira, mesmo quando se é racional. Queria até ser uma mosquinha para ir junto.


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Imagem de Valentina Tereshkova, disponibilizada pela AFP, publicada junto com a coluna de Bia Braune. 

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Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

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