Duvido que tenha alguma língua no mundo com tanta palavra pra bagunça quanto a nossa. E o léxico não vem do grego ou do latim: nossos termos pra desordem nasceram por aqui, às vezes sem pai nem mãe.
Bagunça, por exemplo: tem pais desconhecidos, assim como furdunço e fuzuê. O Brasil inventou a fuzarca —ou talvez o contrário.
Auê, fuzuê, frege, bafafá, rebuliço. Qualquer falante do português saberá do que trata essas palavras, mesmo que nunca as tenha ouvido. Escarcéu e banzeiro vieram do mar. O primeiro é a onda gigante, o segundo é o mar agitado, e ambos passaram a designar agitação de gente que se comporta como o mar.
Minha vó chamava de murundum um baú cheio de cartas e fotos —corruptela de murundu, sinônimo de barafunda, aquele amontoado de qualquer coisa. Tenho pena das bagunças obsoletas, que morreram com o tempo. Ninguém nunca me chamou pra uma patuscada, um salsifré, um bailarico. Gandaia ainda se usa, mas só pra cair nela. Já ninguém se levanta pra uma gandaia.
Baderna veio da Marietta —a bailarina italiana que fez um sucesso estrondoso no Rio ao misturar danças africanas e balé clássico— isso em 1850. Proibida de dançar lundu nos palcos, passou a dançar ao ar livre, no largo da Carioca, junto com africanos escravizados.
Baderna virou, primeiro, sinônimo de beleza, depois de tumulto: seus fãs, os badernistas, protestaram contra a proibição fazendo o que melhor sabiam fazer: fuzuê. (Chamei minha filha de Marieta por causa dela, e os nomes têm força: quando não está no balé, está na bagunça —geralmente nos dois.)
Arruaça quem faz são os outros —e geralmente quem acusa é a imprensa. Quando a polícia chega, o que podia ser um tumulto vira quebra-pau. Perceba que, quando a confusão vira porradaria, ela ganha um hífen: se transforma num quebra-quebra, um pega-pra-capar, um deus-nos-acuda, um salve-se-quem-puder, uma casa-da-mãe-joana, vulgo casa-da-sogra (pobre da sogra chamada Joana).
Alvoroço vem do árabe, onde servia pra designar um tipo muito específico de confusão: os gritos de alegria que a gente dá ao receber alguém querido. Algazarra também vem dos mouros, mas designa um tipo de tumulto mais específico: o banzeiro que o Exército mouro promovia antes de atacar, pra assustar o inimigo. Os árabes, assim como nós, tinham pós-graduação em gritaria.
Gosto das palavras que servem pra designar ao mesmo tempo uma forma de confusão e uma forma de comida —sururu, sarapatel, angu de caroço. Grande parte da nossa culinária tem origem na bagunça. Não é só o prato que parece um murundum, mas também a ocasião em que se come: não se degusta um sururu sem promover um sarapatel, e vice-versa. Galhofa já significou banquete, até virar sinônimo de bagunça, e hoje virou humor fácil —no teatro, quando o comediante perde a mão, alerta-se, na coxia: "Cuidado com a galhofa".
Tem ritmo que leva a confusão no nome: pagode, forró e frevo já significaram balbúrdia, antes de ela se organizar em notas musicais. Até hoje carregam a confusão em que nasceram, e, assim que as notas soam, logo se promove um furdunço. Um pagode, quando tocado sozinho, não é um pagode, mas outra coisa. Pra virar pagode precisa de alguém atrapalhando quem toca. Forró precisa de pelo menos três pessoas, uma tocando e duas dançando. Frevo precisa de uma cidade inteira.
Dominamos, como ninguém, a tecnologia do furdunço. Tudo o que funciona, no Brasil, do forró ao sarapatel, conseguimos através de algazarra. Toda tentativa de moralizar o galinheiro saiu pela culatra: a ordem só levou ao regresso. O progresso só alcançamos na fuzarca —sem cair na galhofa jamais. Não existe contradição entre o balé e a bagunça.
Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo.
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