quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Arnaldo Jabor morreu justo quando Lula e Alckmin se entendem


Ele abriu as ventas, respirou fundo, olhou o nada desesperançado, com aqueles olhões azuis, e me disse, do alto dos seus quase dois metros, "nós íamos fazer um país incrível".

Arnaldo Jabor tentava me falar de como era promissor o Brasil que existiu antes do golpe militar. O Brasil do cinema novo, de Lina Bo Bardi, da bossa nova, de Tom, João, Nelson Pereira e de Glauber.

Os anos de chumbo se abateram sobre uma geração que chegou a sentir o gosto de viver num país sensível, com algo de próprio para apresentar ao mundo. E, mesmo debaixo de pancada, esses jovens cineastas, músicos, dramaturgos, escritores, atores e artistas foram capazes de produzir, na periferia do planeta, obras referenciais, enfrentando, com irreverência e coragem, um governo autoritário, truculento e assassino.

A ditadura deixaria de herança uma nação isolada e uma crise econômica que se arrastaria por quase duas décadas. Mas a elite militar da época, ao contrário da de agora, possuía um projeto nacionalista de governo. A Embrapa e a Embraer são fruto dessa estratégia, e também a Embrafilme.

Protegida da concorrência estrangeira, a TV prosperou alinhada com o Brasil "Ame-o ou Deixe-o". O cinema, ao contrário, ocupou a Embrafilme, fez dela a trincheira oposta e Jabor fez parte da infantaria.

Ao contrário de seus pares, Jabor não nasceu para a alegoria e considerava "Pindorama" um desastre cinematográfico. O moço era todo classe média de Copacabana. E, por raiva do apoio da mediocracia ao golpe, se enfurnou nos apartamentos da Princesinha do Mar para entender o que tinha na cabeça a classe à qual pertencia. Jabor se descobriu Jabor no maravilhoso "A Opinião Pública".

Na sequência, mirou a tragicomédia patética de Nelson Rodrigues para falar dessa mesma burguesia. "Toda Nudez Será Castigada" e "O Casamento" são as melhores transposições feitas para a tela do nosso maior dramaturgo.

Enquanto os colegas falavam do povo e dos revolucionários, Jabor explorava as idiossincrasias de sua própria classe, caso raro, no Brasil. Em 1978, depois de cinco anos dedicados ao Nelson, pariu o extraordinário "Tudo Bem", com Paulo Gracindo, minha mãe e meu pai, entre outros incríveis. Foi quando o conheci.

Elvira, a dona de casa, deseja pintar o apartamento de amarelo xixi e tenta convencer os operários do quanto é maravilhosa a vida deles. Juarez, o marido, discute com seus fantasmas a grandeza de um país que não existe. E as empregadas, uma santa e uma puta... E a romaria da escada de serviço. "Tudo Bem" é demais.

Fui à estreia de "Tudo Bem" no cinema Pax, hoje extinto. O filme seria um estrondo, não fosse a qualidade nauseabunda do som, que nem com legenda dava para se entender. Fazer cinema era uma atividade precária, custosa e bissexta.

Depois, vieram "Eu Te Amo" e "Eu Sei Que Vou Te Amar", sobre a dor da separação real de Maria Eleonora, mãe de suas duas filhas, Carolina e Juliana. Eu não vou nem tentar explicar o significado que o convite para fazer "Eu Sei Que Vou Te Amar" teve na minha vida —mais do que a Palma de atriz em Cannes, a grande conquista, para mim, foi ter tido a chance de trabalhar com um gênio que eu admirava.

A crise já estava braba em "Eu Sei Que Vou Te Amar", tanto que Jabor partiu para um filme pequeno, em uma locação, com apenas dois atores. Não demoraria, a Embrafilme, que viabilizou o cinema durante um período nefasto, seria extinta com uma penada, pelo governo Collor, num ato de vingança semelhante ao que está em curso agora.

Os heróis do cinema novo e os cineastas que os sucederam foram sufocados. Os jovenzíssimos foram viver de clipe, de comercial, e Jabor, bendito fruto de Copacabana, num desespero de dar dó, foi se reinventar, na crônica e no jornalismo.

Jabor renasceu em São Paulo, junto com o real e FHC. Aquele país que ele sonhou viver, talvez voltasse a ser possível. Livre do peso do cinema, arte cara e coletiva, ele descobriu a liberdade da caneta e voltou a ser experimental, até no Jornal Nacional.

Sua ressurreição pessoal se confundiu com a do país. O Brasil é para profissionais. Quando Lula se tornou presidente e a centro-esquerda se dividiu, com PT e PSDB rachados, numa disputa figadal, Jabor escolheu um dos lados.

Nesse antagonismo, que terminaria mal, com Bolsonaro no poder, Jabor virou elite branca. Numa sessão do Festival do Rio, ele foi vaiado por uma parte aguerrida da plateia. Incrível vê-lo partir agora, logo agora, quando Lula e Alckmin, por fim, resolveram conversar.


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário