O Brasil acordou para o pesadelo.
O linchamento de Moïse Kabagambe e a execução de Durval Teófilo Filho nos fizeram perceber que não somos os sujeitos bacanas, simpáticos e hospitaleiros que habitam o imaginário coletivo brasuca.
Os episódios destes dias escancaram a cara medonha do Brasil, e não há harmonização facial que resolva tal desastre. Sai o Zé Carioca, entra o goleiro Bruno no cargo de embaixador da brasilidade.
É um país cruel, bestial, dissimulado e feroz. Racista até a medula. Perpetramos a façanha de perder na comparação com um Congo destroçado pelo colonialismo atroz e por guerras fratricidas. Belo serviço dos nossos milicianos.
Ainda que de soslaio, os dois crimes pavorosos nos obrigam a olhar para o espelho. Nunca fomos o paraíso tropical das chanchadas da Atlântida, mas parece que só piora.
Temos um presidente a fazer troça de um desastre que, se não matou ninguém, vai atrapalhar demais a vida dos habitantes da maior cidade da nação. Temos o filho do homem, que atribui o mesmo desastre à contratação de profissionais mulheres pela empreiteira da obra.
Temos uma ministra dos Direitos Humanos que demora dez dias para lamentar o sacrifício de Moïse, enquanto propaga mentiras abomináveis sobre a causa da gravidez de meninas pobres e desassistidas pelo estado que ela representa.
Temos policiais que cravam um "culposo" num B.O. de homicídio porque acham aceitável o pretexto do criminoso confesso –um sargento da Marinha que "confundiu" o vizinho negro com a imagem de um bandido genérico.
Acabei de voltar do Rio de Janeiro, terra onde tombaram Moïse e Durval. Cheguei lá de avião, no Santos Dumont, o que faz toda a diferença.
Não passei pela Baixada, pela parte mais podre da baía de Guanabara, pela paisagem do piscinão de Ramos, pelas placas que isolam a Linha Vermelha da favela da Maré.
Caí direto no lar da bossa nova, do chopinho, da caipirinha, do arroz à piemontese, da feijoada, do pernil com maionese, dos brancos progressistas da Gávea que sorriem o tempo todo, sabe-se lá por que cargas d’água, enquanto a Rocinha quase engole a bagaça inteira.
Fui embora de uma cidade novamente aturdida pelo choque, pela revolta, pelo ódio e a vergonha diante da incompetência crônica para sanar chagas que já têm meio milênio. Vai passar.
Vamos loguinho nos deixar adormecer e deixar para lá o pesadelo da vida real. Tome biscoitos Globo, empada de camarão, arroz com brócolis, mate com limão, guaraná sem gás e uma multidão de brancos sem religião atirando barquinhos de papel para Iemanjá no mar da zona sul.
Tome mais caipirinha. Tome mais feijoada. Quem traz o rango e a birita é um africano que trabalha quase de graça e, se reclamar ou beber além da conta, será espancado até a morte.
Assim vamos desde sempre. O padrão seria tedioso se não fosse repugnante.
Texto de Marcos Nogueira, em seu blogue, Cozinha Bruta, na Folha de São Paulo.
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