sábado, 4 de dezembro de 2021

A nova política do Brasil da religião barulhenta e da fome quieta


A gente anda esquecida de dar importância a transformações graves que acontecem bem diante das fuças, que mudam o ar social e político que se respira.

Não se trata apenas da normalização de horrores sob Jair Bolsonaro: golpetorturaditadura, ignorância e ódio à diversidade humana, por exemplo. Vai além do bolsonarismo, que foi veículo ou catalisador de mudanças, mas é menor do que essas torrentes.

A religião voltou a se tornar assunto de Estado, oficialmente, com a indicação e a aprovação de André Mendonça para uma cadeira do Supremo, por exemplo.

Sim, já tivemos crença oficial ou oficiosa. A Igreja Católica, muita vez reacionária e monopolista, teve peso enorme na política e na sociedade. Esqueceu-se disso talvez porque tenha havido um vácuo de política religiosa. Imaginou-se então que o país evoluía para a laicidade civilizada, de liberdade para todas as crenças, que seriam assunto privado, se não íntimo. Esse lapso ocorreu entre o começo da decadência da influência do catolicismo, a partir do final dos 1960, e o fortalecimento político-econômico do que se chama hoje genericamente de "evangélicos", no começo dos 1990. Foi lapso no sentido de tempo e de engano.

Os tataravôs da ciência política diziam que, quando um grupo social, em geral emergente, se considera pouco representado ou poderoso, abandona a coalizão em que se abrigava e cria um novo partido, no sentido amplo do termo. É o caso dos "evangélicos", mas também da agrolândia ou do sertanejistão ou dos militares reemergentes.

O ano de 2022 será o nono de renda (PIB) per capita menor do que no pico de 2013. Com muita competência e sorte voltaremos a esse nível apenas em 2026. Seria de resto mera recuperação de terreno perdido: não entra nessa conta o que deixamos de crescer nesse período. A geração que se tornou adulta em 2014, que fazia então seus 21 anos, chegará a ser trintona sem jamais ter visto o país crescer.

Ainda mais impressionante, a Grande Estagnação, piorada por outras crises, não provocou o surgimento de nenhum grande movimento social ou político dos desvalidos, nem ao menos um tumulto de protesto. A fome está quieta no país da religião barulhenta ou do ruído das tretas do sectarismo ignorante, da grande ascensão do idiota.

A gente não nota também que algumas relações socioeconômicas passaram por transformações profundas, que em muito país provocariam conflito. A lei do trabalho foi eviscerada e não houve transplante de novas proteções (ao contrário, a informalidade come o que sobrou das entranhas). A lei das aposentadorias passou por mudança grande (tanto faz se "não resolve o problema fiscal", trata-se de outro assunto aqui). O Estado continuou grande e regulador da economia de favores de mercado, mas falta Estado democrático.

A crise econômica crônica, a mudança estrutural do trabalho e a falta de debate social e político do destino econômico vão fazendo com que o país se divida em uma massa de plebeus aos quais se quer entregar não mais do que uma ração de pão (rendas mínimas) e uma elite restrita a um enclave que vive de rendas ou do trabalho que restará.

Este país em que não se fala mais de desenvolvimento (ou em que tal processo se tornou inviável) corre o risco de se tornar uma caricatura pop de pós-apocalipse moderno com traços de despotismo antigo, de pão, algum circo e nenhum trabalho, com regiões feudalizadas por duques do dinheiro e por milícias-facções, no que sobrar do incêndio ou da seca do desastre climático, talvez sob uma política teocratizada.

Descambamos aos poucos para esses destinos, desapercebidos.


Texto de Vinicius Torres Freire, na Folha de São Paulo

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