domingo, 12 de dezembro de 2021

O dia em que a luz apagou


Quando te conheci você vestia uma calça jeans surrada e uma camiseta rasgada. No meio das pessoas daquele bar, foi a única que me chamou a atenção. A gente se olhou, se enxergou, se beijou. Você dormiu na minha cama na primeira noite, eu dormi na sua na segunda. Você me levou para aquela pousada em Monte Verde onde passamos três dias fazendo amor. Fomos juntos adotar o Nicolas e a Bia, os gatos que sacramentaram a nossa aventura. Você queria que eu fosse morar na sua casa, mas acabamos morando na minha porque era mais perto do meu e do seu trabalho. Nossa primeira briga séria foi naquele dia em que eu não quis ir jantar na casa da sua mãe. Você saiu batendo a porta e depois de quinze minutos voltou e me pediu desculpas. Eu lembro de pensar que seus olhos cor de mel, quando cheios de lágrimas, ficavam verdes. No dia em que fiz o teste de gravidez, você chegou em casa com flores e uma caixa daquele chocolate com laranja que eu amo. Você se ajoelhou e beijou minha barriga. Naquele primeiro fim de semana em que nos vimos como mãe e pai passamos muitas horas pensando em nomes. Inácio nasceu um bebê gordo e sorridente. Você disse que era lindo como eu, eu disse que era lindo como você. Fomos pra casa os três juntos pela primeira vez num 10 de julho frio e ensolarado. Eu olhava você trocar a fralda de Inácio, meio sem jeito, meio amedrontado, e pensava em como te amava. Você me fotografava amamentando e depois vinha beijar meu pescoço sussurrando que nunca tinha amado assim. Inácio fez dois anos e levamos ele pela primeira vez ao Palestra para ver nosso time jogar. Lembro de como rimos e choramos ao vestir Inácio com o uniforme completo do Palmeiras pela primeira vez. Quando Inácio fez cinco anos demos a primeira grande festa de aniversário e eu lembro de como você passou muitas horas enchendo aqueles balões para decorar o salão de festas. Depois, talvez para escapar de tantos convidados, ficou no pula-pula com ele por muito tempo. Lembro do dia em que você chegou para o jantar e alguma coisa tinha mudado no seu olhar. Você se movimentava do mesmo jeito, falava do mesmo jeito, comia do mesmo jeito, ria do mesmo jeito, mas seu olhar não estava mais ali. Lembro de como passou a sair mais cedo e a chegar mais tarde. Lembro de como isso não me afetou e do que sentia estando sozinha em casa: uma liberdade estranha e cheia de culpa. Lembro de quando você parou de colocar um copo d’água a meu lado na mesinha de cabeceira e de quando eu parei de notar. Lembro de quando deixei Inácio com você para viajar com a Carol, e de como você me disse docemente para ir sem pressa de voltar. Lembro de quando fomos juntos ao Palestra pela última vez. Lembro de como fomos mudos para casa mesmo depois de termos vencido um jogo tão difícil. Lembro de como arrumei minhas coisas na mala sabendo que não voltaria mais. Lembro do seu olhar sentando na cama me vendo pegar aquele vestido de renda que você amava e encaixá-lo cuidadosamente no meio das outras roupas. Lembro com muita clareza do momento em que eu ergui a mala e a arrastei até a porta. Lembro dos seus olhos verdes cheios d’água e da sua boca que não dizia nada. Lembro que chamei o elevador e voltei para te abraçar. Lembro das suas mãos nas minhas costas: firmes, grandes, seguras. Lembro de como ao mesmo tempo queria e não queria que aquele abraço terminasse. Lembro de olhar para você e enxergar os mesmos olhos que vi naquele bar, dez anos antes. Lembrei do amor que senti e do amor que perdi. Entrei no elevador e vi, pela última vez, a luz do hall apagar.


Texto de Milly Lacombe, na Folha de São Paulo

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