No apagar das luzes de 2021, fui assistir à exibição da cópia restaurada de "Terra Estrangeira", no Festival do Rio. Se ver na tela grande, num trabalho realizado há 25 anos, é entrar na cápsula do tempo. "Terra Estrangeira" é a obra da juventude de todos os que dele participaram. No meu caso, o filme é o resumo dos meus 20 anos errantes.
Durante a sessão, procurei me lembrar de quem eu era, ou pensava ser, na filmagem. Não consegui. Era como olhar para alguém outro, que não eu. Tenho 56 anos, os 20 já vão longe. E mais distantes ficaram com a pandemia, divisor de águas entre os 40 idos e os 60 anunciados.
Encerro 2021 mais para 60 do que para 40. Os sinais da transição vieram aos poucos, misturados com os efeitos do isolamento. Uma mudez reflexiva aqui, um acordar às quatro da matina acolá, uma certa preguiça mental, física e, fator preocupante, uma rabujice inabitual.
Passei metade de 2021 resmungando, irritada com o mundo, que está mesmo de amargar. A broncura intragável, a incompetência e a vileza generalizadas, a miséria, a loucura, o destrambelho, o vigiar e punir; esse vírus que não vai embora e as 1.001 noites que nos separam da eleição de outubro, a discutir tudxs e todxs.
Motivos não faltam para se enervar, nesse primeiro ano da terceira década do primeiro século do terceiro milênio. Passado um semestre de casmurrice, no entanto, fui obrigada a admitir que a irritação tinha um quê da porra da velhice chegando.
Note, todo velho discorda. Aceita, mas discorda. O presente é o futuro do velho, e o presente sempre trai o futuro imaginado. A desaprovação resignada é o humor de fundo da terceira idade, um desacordo que deu de me dominar nesse 2021 cavernoso.
A vida não entregou o prometido. Nunca esteve nos planos lidar com um micróbio autômato, que só faz se multiplicar; com 21% de uma população que, não importa o que esse homem faça, continuam lhe confiando o voto; com o vício do amor e ódio do cassino do Zuckerberg; com apocalipse climático e crise da democracia.
Dobro os 50 anos num momento azedo da humanidade, é fato, mas não há nada pior do que a raiva e a autocomiseração. Remando no sentido contrário, me pergunto se não terá sido sempre assim. Nasci no ano em que minha avó chegou à idade que tenho agora.
Em 1965, aos 56, dona Carmen já atravessara duas guerras; sobrevivera à gripe espanhola; ficara órfã de pai aos cinco; perdera seis dos sete irmãos, um bebê e enfrentara a tuberculose da filha adolescente.
Foram tantas as desgraças que ela, talvez, não tenha tido tempo de reparar na renúncia de Jânio e no golpe militar, no assassinato de Kennedy, na Guerra do Vietnã e na Fria; na pílula, nos Beatles e nos Rolling Stones. Não sei se dona Carmen temeu o Armagedom nuclear, mas suspeito que, assim como a neta, ao adentrar a metade do caminho de sua vida, tenha se visto perdida numa selva escura.
Tancredo Neves morreu em abril de 1985, ano em que minha mãe completou 56 voltas ao redor do sol. Não havia muito o que comemorar, num país falido, com eleições indiretas para presidente. Para além das nossas fronteiras comerciais fechadas, a Nintendo lançava o primeiro console de videogame dos Estados Unidos; a Vodafone, a rede de telefonia celular da Inglaterra; e a Microsoft, o Windows 1.0 para geral.
O mundo já prometia ser o que é agora, enquanto nós rumávamos para laçar boi no pasto, a fim de evitar o desabastecimento. Naquele mesmo ano, cientistas baseados na Antártida anunciaram a descoberta de um buraco na camada de ozônio, problema sério para as gerações vindouras, netos e bisnetos de Arlette e Carmen, hoje na universidade.
É a minha vez de lidar com as incertezas. Parei de reclamar, me matriculei numa aula de boxe e saí distribuindo soco em saco de areia. Reconheço as conquistas dos movimentos de reparação e resistência mais aguerridos e não sinto nostalgia da ansiedade juvenil de outrora. A inadequação é inerente à idade. Sou de época, fazer o quê?
Em 2019, construí um barco de madeira com quilha e tudo, amarrei papeizinhos com os desejos no mastro e, à meia-noite em ponto, coloquei na água para navegar. A jangadinha atravessou a baía e ganhou o mar, num feito que parecia apontar para um ano esplendoroso. Não foi.
A virada de 2021 será na mesma praia, sem barco e sem projeções. Chega de frustração. Tenho um amigo, amante de Homero, que diz que a esperança é a muleta dos fracos. Volto aqui em fevereiro, de olho em outubro e com o Chile na cabeça, desejando ao leitor doses extras de estoicismo e serenidade.
Saúde é tudo, felicidade é pedir demais.
Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo.
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