quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Ficaste na ronha, javardo: chega de aldrabice que isto é batota e desenrascanço


Os portugueses levaram pro Brasil pelo menos 100 mil palavras. Tenho pena que tenham esquecido em casa algumas das minhas preferidas. Talvez não tenha sido esquecimento mas ciúmes: gostavam tanto delas que não queriam vê-las em nossas bocas. Há todo um rol de palavras que nunca atravessaram o Atlântico.

Gosto em especial da palavra ronha —e de praticá-la. A palavra parece outra coisa, e de fato já foi: uma espécie de sarna, e também uma doença de plantas. Ninguém mais usa nesse sentido. A expressão "ficar na ronha" se refere à pratica de abrir os olhos mas permanecer na cama. Não imaginam minha excitação ao descobrir que existe uma palavra pro meu esporte preferido.

A arte da ronha consiste em acordar sem no entanto se levantar. Trata-se do primeiro trambique do dia: a procrastinada inaugural de todas as manhãs. "Dormi pouco", dizem, "mas fiquei duas horas na ronha" —e pode parecer que ronha equivale à função soneca. Não, durante a soneca voltamos a dormir. E na ronha permanecemos naquele meio termo que Proust demorou dez páginas pra descrever, mas aos portugueses bastaram cinco letras.

Tenho muita pena de não usarmos a palavra javardo. Trata-se de um sinônimo pra javali, mas que nunca será usado pra designar o animal propriamente dito. Chamam de javardo alguém que se comporta como um javali, ou melhor, que se comporta como imaginamos que um javali se comportaria: de forma grosseira, estúpida, abjeta. Gosto porque a palavra soa precisamente o que ela significa. Assim que desembarquei em Portugal, ouvi de um taxista a frase: "Vosso presidente é um javardão". Nunca tinha ouvido a palavra. Ainda assim não tinha como discordar.

Da mesma forma, não temos um xingamento bom como "aldrabão", termo que designa com especial precisão um farsante muito específico, algo entre o trapaceiro e o impostor, que comete aldrabices, pequenas fraudes —não confundir com batotas, outra palavra que não viajou, que se refere às trapaças quando cometidas dentro de um jogo sem grande importância.

De todas as palavras esquecidas, tenho uma predileta, aquela que designa a solução que resolve um problema de maneira temporária, mas não em definitivo: desenrascanço. Trata-se de uma gambiarra, mas não necessariamente mecânica —pode ser qualquer coisa que nos safe, como um papelão que faz às vezes de guarda-chuva.

Nunca ouvi essa palavra em nossas bandas, e ao mesmo tempo nunca uma palavra definiu tão bem a atividade diária do brasileiro, esse desenrascado. Queria essa palavra em nossa bandeira: ordem, progresso e desenrascanço.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo. 

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