sábado, 11 de dezembro de 2021

Excesso de lambe-lambe


Semana de Arte Moderna está ganhando miríades de publicações às vésperas do seu centenário. Só faltam adaptá-la para a Bíblia, com os novos evangelhos segundo Mario, Oswald e Menotti para substituir os dos passadistas João, Lucas e Mateus. Várias dessas publicações falam das dores de abdômen que afligiam o querido Mario de Andrade, atribuídas a úlceras, gases e amebas.

Para mim, os médicos desconsideraram o mais essencial: a correspondência de Mario. Como se sabe —e este é um fato indiscutível sobre o líder do Modernismo—, sua troca de cartas entre 1922, quando ele despertou para o mundo, aos 29 anos, e 1945, quando morreu, foi colossal. Milhares delas, de páginas e páginas, todos os dias, por anos e anos, com Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Rachel de Queiroz, Portinari, Sergio Buarque, Pedro Nava, Jorge Amado, Carlos Lacerda, Fernando Sabino, Otto Lara, Paulo Mendes Campos, Henriqueta Lisboa, muitos mais. A maioria sobre estética, poesia, gramática —Mario não se passava por dramas coletivos e segundas-guerras.

Para mim, é batata. Esse febril troca-troca epistolar exigia dele categóricas lambidas na cola seca na borda dos envelopes, para fechá-los, e no verso dos selos. O selo tinha de ser levado à língua e umedecido uma ou duas vezes para a cola aderir ao papel. Uma carta comum levava três ou quatro selos. Multiplique isso agora por nove ou dez cartas por dia e calcule —umas 80 lambidas diárias. Por mais fugazes, parte dessa cola tinha de deslizar sub-repticiamente para o estômago do lambedor.

A cola era a temida goma arábica, capaz de grudar cofres e bigornas. Imagine seu efeito nas paredes do abdômen, que era para onde seus vestígios escorriam quando Mario a lambia e deviam formar uma espécie de verniz. Inevitável que ele penasse com cólicas.

Rubem Braga não teve nada com isso. Orgulhava-se de ser o único escritor brasileiro a nunca ter recebido uma carta de Mario.


Ruy Castro, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário