1) Existe algo de insuportavelmente egoísta nas pessoas que amam certos artistas. Um exemplo: morreu na semana passada Stephen Sondheim, aos 91 anos. E penso logo nas obras que ele nos deixou, como se a morte fosse um detalhe.
Eis a minha monstruosidade: a arte é mais importante que a morte. A arte é mais importante que a vida.
Minha única consolação é saber que Sondheim entenderia essa insensibilidade. Aliás, olhando para a sua obra, uma das mais importantes obras literárias e musicais do século 20, talvez esse seja o tema que a define: como habitar dois mundos sem nos atraiçoarmos a nós?
Como viver a "realidade" com os outros, para os outros —e, ao mesmo tempo, não nos perdermos a nós como indivíduos (e, no caso de Sondheim, no papel de criadores)?
Essa pergunta é explícita em "Company", preguiçosamente apresentado como um musical sobre o casamento. Superficialmente, será: Robert, o personagem central, chega aos 35 anos. Os amigos, todos casados, querem que ele case também.
Robert tem dúvidas, sobretudo quando escuta as dúvidas dos próprios amigos, que se confessam gratos-arrependidos por não serem mais solteiros (é o tema de "Sorry-Grateful", uma das mais perfeitas canções de Sondheim).
A peça é uma obra-prima da ambiguidade; ou talvez seja uma obra-prima sobre as relações humanas, começando pelas relações sentimentais, onde essa ambiguidade está sempre presente: queremos ficar e não ficar com a pessoa que amamos; sabemos o que temos e sabemos o que perdemos; sentimo-nos vivos e tememos estar meio-mortos.
Em outro musical, o espantoso "Sunday in the Park with George", esse dilema é vivivo pelo pintor George Seurat —e o tema "Finishing the Hat" é, ao mesmo tempo, uma apologia da arte e um lamento pelos sacrifícios que ela exige. O tom triunfal de Seurat, encantado pelo seu próprio talento, é simultaneamente um grito de desespero.
Os personagens de Sondheim, ao contrário do que afirmam certos críticos, não são "frios" ou "cerebrais" ou "cínicos". São exatamente como somos: complexos e contraditórios, por baixo de todas as máscaras.
A frieza, a razão ou o cinismo são apenas algumas dessas máscaras: como no musical "Into the Woods", a Bruxa Má faz jus ao nome ao aprisionar Rapunzel na torre. Mas sabemos depois, pela sua própria boca (no dilacerante tema "Stay with Me"), que apenas o faz porque teme ficar sozinha na sua feiura e velhice.
Na história da Broadway, encontramos nomes que nos deixaram algumas das mais memoráveis canções do songbook americano: George Gershwin, Cole Porter, Richard Rodgers.
Mas nenhum deles possuiu aquela "capacidade negativa" que o poeta John Keats atribuía a Shakespeare: o talento para cultivar "incertezas, mistérios, dúvidas"; a coragem, no fundo, para viver e criar sem recorrer a dogmas ou clichês. Não há respostas fáceis em Sondheim porque também não há perguntas fáceis.
No clima moral em que vivemos, feito de maniqueísmos ideológicos cada vez mais violentos e ignorantes que também corrompem a literatura e as artes, a obra de Sondheim pertence a uma esfera superior.
É obra intemporal que vai perdurar para lá do ruído e da espuma do presente.
2) Soube da morte de Stephen Sondheim depois de assistir a "Tick, Tick... Boom!", o mais recente filme de Lin-Manuel Miranda para a Netflix.
Faz sentido. O filme é uma homenagem a Jonathan Larson, um prodígio musical que morreu aos 35 anos. Exatamente na véspera de estreia do seu musical, "Rent", que o tornaria mundialmente famoso.
Mas o filme é também uma homenagem ao principal mentor de Larson, Stephen Sondheim "lui même". Em primeiro lugar, porque Sondheim, interpretado pelo ator Bradley Whitford, aparece em momentos decisivos do filme. E, depois, porque Larson trilhou os mesmos caminhos que Sondheim: uma exploração pessoal, irônica e agônica sobre os dilemas da vida artística e urbana na Nova York da década de 1990.
Escutamos "Johnny Can’t Decide", o belíssimo "Sunday" ou o hilariante "Therapy" e só podemos imaginar o que teria sido da Broadway se Larson tivesse continuado.
Também por isso, a recente morte de Stephen Sondheim (e de Jonathan Larson) é duplamente triste: é uma morte que não deixa herdeiros.
Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo.
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