sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

L'amour (trigina)


Segundo minha amiga Fernanda, não é surto maníaco, mas surto divorcíaco ou separídico, ou transtorno de separabilidade. A amiga do momento sempre dura cerca de uns cinco anos, então temos tempo. Mando 45 áudios pra ela. Penso que sou homoafetiva ou apenas lésbica ou apenas bissexual ou pra que ser alguma coisa que precisa de definição? Fernanda diz que eu não preciso da Lamotrigina. Eu digo que preciso de "l’amour", e ela responde: "Você é gloriosa!".

Ricardo acha que estou deslumbrada com Fernanda. Eu já estive deslumbrada com Ricardo. Eu nunca perdi minha capacidade de me deslumbrar com as pessoas, e isso, os mais inseguros não sabem, é uma alegria deliciosamente antiga e primitiva.

Eu canto tão alto no carro que vivo sem voz. Talvez eu tenha lambido o rosto dos meus quatro melhores amigos. Fernanda diz que muita gente se separa e fica depressiva e que ficar maníaca é melhor. Acontece que não durmo, como pouco e passo o dia eufórica como se daqui a dez minutos fosse meu baile de debutante e o Oscar Isaac fosse dançar comigo.

Meu psiquiatra acha que um cheirinho de Lamotrigina pode resolver. Só um cheirinho, ele diz. Não é que você tem a doença, ele diz. Você tem só um cheirinho dela, ele diz. Não é que você alugou um prédio inteiro, você apenas ia dar um jantar pra nove pessoas e elas viraram 85 e você precisou alugar 60 pratos e 60 copos e 60 talheres e 60 taças faltando duas horas pra festa. Mas tudo bem. Um cheirinho.

Um amigo diz que estou revivendo a adolescência. Vejam vocês: homens podem reencontrar semanalmente a adolescência, a juventude e até mesmo a infância. Mas a mulher cuidadora-matrona-parideira-amamentadora não pode ser solteira, fazer tatuagens, dar festas e beijar na boca. Quer dizer, isso na cabeça deles. E não estou brigando com ninguém, estou apenas expondo minha vida e meus pensamentos porque tenho um cheirinho da doença.

Meu ex-marido diz que não é normal eu marcar uma tatuagem e voltar com seis. Eu digo que agora são ao todo 13 tatuagens, que é o número que salvará 2022. Meu psicanalista diz que há muito tempo eu topei e banquei ser assim e que está tudo bem. Assim "meio louca"? Ele responde: "Você acha que ‘louca’ é a palavra?". Eu falo que me sinto viva. Às vezes tanto que fico exausta no fim do dia. Tanto que preciso chorar pra dormir. Ele diz que acha que está tudo bem. Eu peço meu analista em namoro, em casamento, me declaro, e suspiro e digo que ele me dá espasmos de vitória a cada frase. Ouvir meu analista é saber que existe alguém no mundo que chega até onde eu chego. Ali no fim do arco-íris do tormento, onde tem um tesouro cheio de venenos. E que isso é sexy e lindo. Ele diz que está tudo bem. Mas marco psiquiatra porque quero uma segunda opinião. E, porque tenho um cheirinho da doença, quero também mais três opiniões e marco mais três médicos.

Anna, que está recém-separada e veio para um jantar na minha casa de biquíni (te entendo tanto, amiga), contou que adotou um cachorro enorme, que sua filha detestou, e foi presencialmente até Paraty para uma Flip que era toda online. Eu entrei no Bumble e conheci dois rapazes: um deles printou meu flerte pra mostrar pros amigos: "olha, não é aquela colunista?", e o outro se transformou "no maior amor da minha vida", sendo que durou 47 minutos. Quem não fica louco no divórcio, bom sujeito não é.

Fui até o terreiro, abracei uma mulher incorporada e falei: "Eu só quero encontrar o meu amor". Ela disse que preciso parar de ser criança e ser mulher. Meu analista diria que ela está errada. Meu analista diria que eu sou mulher e criança e velho da lancha e cachorro e coelho e tudo bem. Eu perco todas as chances com meu analista e com o amor da vida de ontem e com o amor da vida de hoje porque escrevo essas coisas. Mas não sou eu, é o cheirinho da doença. O que eu acho, particularmente, um perfume divino.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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