quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Vai sextar um ano novo?


Viagens de trabalho são muitas vezes solitárias. Estar sozinho num bar ou restaurante é comum —e aí a gente aproveita para observar as conversas e delas aprender um pouco mais sobre onde estamos.
Naquela mesa perto da janela, por exemplo, o casal conversa com certa animação. Ele fala muito, e é principalmente sobre cinema, enquanto ela lhe faz contraponto com referências aos livros que tem lido.

No século passado, o ambiente estaria enevoado por nuvens transparentes de tabaco e ambos estariam tragando cigarros mesmo entre as garfadas. O que segue imutável é que na conversa há um entusiasmo intelectual que vibra na atmosfera ao redor e que a moça, vestida com simplicidade, consegue fazer-se elegante com quase nada —um discreto batom encarnado, um lenço delicado jogado com aparente (só aparente) displicência no pescoço, como só se vê em Paris.

Numa mesa mais central, quatro amigos falam em volume de comício. Não são desafetos, mas esgrimem argumentos contrários e debatem com entusiasmo que beira o fanatismo. A língua, e especialmente o sotaque local, tem a dramaticidade que impregna também a música típica, uma inelutabilidade trágica e que parece vir do berço.

São intensos, são politizados como a civilidade exigiria de todos os povos, embora pareçam pouco abertos a serem convencidos de algo, por mais contundente que seja a argumentação dos amigos: as convicções são tão sanguíneas quanto a matéria-prima do "asado" que dividem nesta parrilla de Buenos Aires.

Falar alto não é sua exclusividade. Fora, no terraço, um grupo maior brada felicidade entre taças de vinho. O assunto não são agruras da política, são as alegrias da vida. Olhares sedutores chispam sobre a mesa para moços e moças que os recebem com naturalidade (flerte não é necessariamente assédio, eles sabem).

Lembranças de viagens memoráveis e planos para as que virão são os itens do cardápio, festejados com gestos expressivos. As vozes altas não incomodam porque, como já dito, eles ocupam mesas nas calçadas, onde bebem, comem e se confraternizam mirando a praça antiga das tantas que ornamentam Roma.

Risadas altas também brotam da mesa com uma dezena de pessoas, mas algo parece não transmitir verdadeira alegria. É final de expediente, colegas de trabalho confraternizam diante de muitos copos. Dos trajes formais, as gravatas já deslizaram para o bolso dos paletós, que por sua vez descansam desleixados nas cadeiras.

O grau etílico sobe rapidamente, mas acompanhado por petiscos atraentes, até sofisticados para um bar. É um pequeno alívio para a turma que, na verdade, ri por encomenda: foram convocados pelo chefe para beber e, na tradição local, não se diz não ao superior. Até no Japão, onde a comida é tão boa e tão reverenciada, há momentos tensos como estes num izakaya de Tóquio, próximo da firma.
Em contraste com a falsa alegria de um povo tenso, em outra mesa há conversa tensa apesar de um povo alegre.

Conversas leves do cotidiano ou brigas amigáveis sobre futebol perdem terreno para uma amargura crescente. O inconformismo azeda a cerveja: "Mas o cara é médico e adia vacina das crianças, como pode?"; "quem dirige a entidade antirracismo é racista declarado!"; "o cara é a cara dos milicianos que a família dele protege, como deixamos virar presidente?". Alguém repete, "chega de política, vamos nos divertir", todos concordam, mas, antes da próxima rodada, o assunto volta.

Até a alegria do boteco nós brasileiros estamos perdendo. Mas o ano acaba nesta sexta-feira, e lá vem 2022. Será que vai sextar um novo ano no Brasil, finalmente?


Texto de Josimar Melo, na Folha de São Paulo

Delicinhas da língua; veja um breve compêndio do diminutivo no português


O ano já está no finalzinho, disse. E pensei: finalzinho é quando termina o final. Comecinho, não. Comecinho é quando começa o começo. Finalzinho é quando o final tá mais perto do final. Onde eu quero chegar com isso? Não faço ideia. Mas sei que vou devagarinho.

Enquanto quem está pertinho está mais perto, quem está longinho está menos longe. Enquanto a tardinha é no final da tarde, a noitinha fica no começo da noite.

Um minutinho dura mais do que um minuto, talvez uns três ou quatro. Um segundinho pode durar até 30 segundos regulamentares. Devagarinho é mais devagar. Rapidinho é mais rápido. Igualzinho é mais igual.

Pouquinho é mais pouco. Agorinha não é mais agora. Agorinha já foi agora, até que passou. "Ele chegou agorinha" significa que não chegou agora, mas há dois minutinhos.

Moço é o jovem, mocinho é o contrário do vilão. Mocinha só existe na frase "já virou mocinha", eufemismo pra um aumentativo: menstruação.

Todo o mundo gosta do engraçado, todo o mundo odeia o engraçadinho. O bonito dá inveja, o bonitinho dá pena. Todo o mundo quer ser bom, ninguém quer ser bonzinho. Quem está só pode estar feliz. Quem está sozinho, nunca. A voz só se torna vozinha quando irrita. Ninguém diz: "adoro sua vozinha", mas "para de fazer vozinha".

Na contramão: um pássaro pode incomodar. Um passarinho, nunca. Ricardo Araújo Pereira foi quem me alertou: o quente incomoda ou machuca. Diz-se: "cuidado, está quente." Não se diz: "cuidado, está quentinho." Diz-se "vou ficar no quentinho". Não há delícia maior que a delicinha. Nada é mais gostoso que o gostosinho.

A melhor culinária brasileira é toda diminutiva: escondidinho, empadinha, queijadinha. Não gosto muito de caldo, mas adoro um caldinho. Não gosto tanto de caju quanto de cajuzinho. Nunca comi um picado, mas não resisto a um picadinho. Gosto de coxa, mas prefiro a coxinha. Bolo tem sua graça, mas bom mesmo é um bolinho. Um é assado e doce, o outro é salgado e frito. Um serve na festinha, o outro, no barzinho.

Chamamos de soneca um sono curto, mas de soninho um sono gostoso. Sonequinha é um sono ao mesmo tempo curto e gostoso. "Quero estarzinho com ela", diz Raul Bopp em "Cobra Norato", e continua: "querzinho de ficar junto".

A língua portuguesa tem uma palavra pros buraquinhos que surgem no rosto quando se ri, e essa palavra também designa o lugar onde enterramos os mortos. Quando morrer, me enterrem numa covinha.


Texto de Grogório Duvivier, na Folha de São Paulo

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Como desconstruir um sonho de princesa com uma fada empoderada


A maltrapilha Cinderela chora em meio às cinzas do forno a lenha quando é surpreendida pela aparição de sua fada madrinha.

"Enxugue essas lágrimas, pois estou aqui para ajudar."

"Jura? Então, eu preciso de um look para ir ao baile. Mas não pode ser um look qualquer, tem que ser o look mais bonito da noite."

"Minha doce afilhada, isso não é uma competição."

"Na verdade, é sim. Eu literalmente vou competir pelo amor do príncipe com outras mulheres do reino."

"Quem esse cara pensa que é?"

"O filho do rei."

"Eu não vou permitir que minha afilhada se submeta a uma humilhação dessas."

"Achei que a senhora quisesse me ajudar."

"Sim, estou aqui para jogar sua autoestima lá no alto."

"Por isso mesmo que eu queria que você me descolasse um vestido, um pisante maneiro. Você sabe fazer trança embutida?"

"Beleza não é tudo."

"Tá certo. O príncipe jamais olharia para uma desabonada como eu. Eu preciso ostentar. Chegar num carrão, cercada de staff. Como num clipe do Kondzilla, sabe?"

"Cinderela, que valores são esses? Beleza, dinheiro, status, não é isso que define você. O importante é a sua essência."

"Não basta ter um pai pusilânime, uma madrasta tóxica e duas irmãs postiças invejosas. Tenho que ter uma fada madrinha empoderada também."

"Quer ajuda ou não quer?"

"Eu quero sair dessa vida. Não aguento mais limpar privada suja de menstruação."

"Nojinho de menstruação? Você precisa se atualizar."

"Eu preciso mudar de vida."

"Quer dizer que a solução de todos os seus problemas é um homem?"

"Eu mereço um final feliz."

"A sua felicidade não depende de um relacionamento. Por que você não corre atrás dos seus sonhos por conta própria?"

"Para você é fácil falar. É só sacudir essa varinha e você tem tudo na mão."

"Esse pensamento falocêntrico não vai levar você a lugar algum."

"Então beleza. Eu quero que a senhora me transforme em uma feminista de verdade, que não se importa com o que os outros pensam, que não precisa de homem para nada, que seja um exemplo para as próximas gerações."

"Essas coisas não acontecem em um passe de mágica. A desconstrução é um processo. Você precisará ser forte e corajosa para enfrentar uma sociedade machista. Será julgada, criticada, silenciada. Mas eu estarei do seu lado, juntas somos fortes."

"Não era mais fácil me dar um vestido?"

"Nada é fácil para uma mulher, nem nos contos de fadas."


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Fim de 2021 coincide com minha chegada à velhice num mundo azedo


No apagar das luzes de 2021, fui assistir à exibição da cópia restaurada de "Terra Estrangeira", no Festival do Rio. Se ver na tela grande, num trabalho realizado há 25 anos, é entrar na cápsula do tempo. "Terra Estrangeira" é a obra da juventude de todos os que dele participaram. No meu caso, o filme é o resumo dos meus 20 anos errantes

Durante a sessão, procurei me lembrar de quem eu era, ou pensava ser, na filmagem. Não consegui. Era como olhar para alguém outro, que não eu. Tenho 56 anos, os 20 já vão longe. E mais distantes ficaram com a pandemia, divisor de águas entre os 40 idos e os 60 anunciados.

Encerro 2021 mais para 60 do que para 40. Os sinais da transição vieram aos poucos, misturados com os efeitos do isolamento. Uma mudez reflexiva aqui, um acordar às quatro da matina acolá, uma certa preguiça mental, física e, fator preocupante, uma rabujice inabitual.

Passei metade de 2021 resmungando, irritada com o mundo, que está mesmo de amargar. A broncura intragável, a incompetência e a vileza generalizadas, a miséria, a loucura, o destrambelho, o vigiar e punir; esse vírus que não vai embora e as 1.001 noites que nos separam da eleição de outubro, a discutir tudxs e todxs.

Motivos não faltam para se enervar, nesse primeiro ano da terceira década do primeiro século do terceiro milênio. Passado um semestre de casmurrice, no entanto, fui obrigada a admitir que a irritação tinha um quê da porra da velhice chegando.

Note, todo velho discorda. Aceita, mas discorda. O presente é o futuro do velho, e o presente sempre trai o futuro imaginado. A desaprovação resignada é o humor de fundo da terceira idade, um desacordo que deu de me dominar nesse 2021 cavernoso.

A vida não entregou o prometido. Nunca esteve nos planos lidar com um micróbio autômato, que só faz se multiplicar; com 21% de uma população que, não importa o que esse homem faça, continuam lhe confiando o voto; com o vício do amor e ódio do cassino do Zuckerberg; com apocalipse climático e crise da democracia.

Dobro os 50 anos num momento azedo da humanidade, é fato, mas não há nada pior do que a raiva e a autocomiseração. Remando no sentido contrário, me pergunto se não terá sido sempre assim. Nasci no ano em que minha avó chegou à idade que tenho agora.

Em 1965, aos 56, dona Carmen já atravessara duas guerras; sobrevivera à gripe espanhola; ficara órfã de pai aos cinco; perdera seis dos sete irmãos, um bebê e enfrentara a tuberculose da filha adolescente.

Foram tantas as desgraças que ela, talvez, não tenha tido tempo de reparar na renúncia de Jânio e no golpe militar, no assassinato de Kennedy, na Guerra do Vietnã e na Fria; na pílula, nos Beatles e nos Rolling Stones. Não sei se dona Carmen temeu o Armagedom nuclear, mas suspeito que, assim como a neta, ao adentrar a metade do caminho de sua vida, tenha se visto perdida numa selva escura.

Tancredo Neves morreu em abril de 1985, ano em que minha mãe completou 56 voltas ao redor do sol. Não havia muito o que comemorar, num país falido, com eleições indiretas para presidente. Para além das nossas fronteiras comerciais fechadas, a Nintendo lançava o primeiro console de videogame dos Estados Unidos; a Vodafone, a rede de telefonia celular da Inglaterra; e a Microsoft, o Windows 1.0 para geral.

O mundo já prometia ser o que é agora, enquanto nós rumávamos para laçar boi no pasto, a fim de evitar o desabastecimento. Naquele mesmo ano, cientistas baseados na Antártida anunciaram a descoberta de um buraco na camada de ozônio, problema sério para as gerações vindouras, netos e bisnetos de Arlette e Carmen, hoje na universidade.

É a minha vez de lidar com as incertezas. Parei de reclamar, me matriculei numa aula de boxe e saí distribuindo soco em saco de areia. Reconheço as conquistas dos movimentos de reparação e resistência mais aguerridos e não sinto nostalgia da ansiedade juvenil de outrora. A inadequação é inerente à idade. Sou de época, fazer o quê?

Em 2019, construí um barco de madeira com quilha e tudo, amarrei papeizinhos com os desejos no mastro e, à meia-noite em ponto, coloquei na água para navegar. A jangadinha atravessou a baía e ganhou o mar, num feito que parecia apontar para um ano esplendoroso. Não foi.

A virada de 2021 será na mesma praia, sem barco e sem projeções. Chega de frustração. Tenho um amigo, amante de Homero, que diz que a esperança é a muleta dos fracos. Volto aqui em fevereiro, de olho em outubro e com o Chile na cabeça, desejando ao leitor doses extras de estoicismo e serenidade.

Saúde é tudo, felicidade é pedir demais.


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Marilene Felinto precisa dar um rolé maior no Rio


Entre os cronistas cariocas nas décadas de 50 e 60 —um timaço com Sérgio Porto, Paulinho Mendes Campos, Fernando Sabino, Carlinhos Oliveira—, Antônio Maria é o que menos deve a Rubem Braga, que abriu o caminho da modernidade estilística e da conversa fiada com o leitor no fim dos anos 30. Os craques, de alguma maneira, são filhotes do velho sabiá. Maria, não; já veio arrumadinho e penteado do Recife.

O pesquisador Guilherme Tauil, na antologia "Vento Vadio" (Todavia), reuniu 185 textos do cronista, a maioria deles só publicada em jornais e revistas. É um livraço, o melhor lançamento do ano. Nele se comprova que Antônio Maria até se atrevia a tirar sarro de Rubem Braga:

"Sou novo no bairro e faço uma grande confusão entre o Jardim Botânico e a casa da Besanzoni [atual parque Lage]. Ambas são moradas de muito muro e, às vezes, dão impressão de casa mal-assombrada. No Jardim Botânico não acontece nada além da árvore da primavera, que bota uma flor em setembro para o Braga escrever uma crônica e viver, por longo tempo, dos comentários que desperta".

Marilene Felinto também saiu do Recife, mas escolheu viver em São Paulo. Ela veio ao Rio e não viu flor nenhuma. Só viu "pedra sem poesia". Como relata em artigo na Ilustríssima (18.dez.2021), passou algumas horas ou dias em Copacabana e conversou com dois taxistas. Citou dados da violência na cidade, como se ela não fosse geral no Brasil, e lamentou a adesão local ao bolsonarismo na época da eleição, esquecendo-se de falar que hoje quem aplaude o presidente são os empresários da Fiesp.

Crítico dos costumes e da política no Rio, Maria viveu aqui por quase 25 anos. Espantou-se e se maravilhou com a cidade. Mas não conseguiu defini-la —como acontece a qualquer carioca. Com rapidez, Marilene decretou: "uma ditadura de classes maravilhada consigo mesma". Na próxima vez eu a convido para dar um rolé.


Texto de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo

Educação pelo Rio


O Rio é o de Janeiro —esse lugar-comum (de beleza e violência). Minha primeira viagem pós-lockdown pandêmico foi para o Rio, depois de 15 anos que eu não pisava lá. O ideal seria escrever um romance de costumes sobre o Rio, mas como me falta talento, o romance sai primário, feito redação escolar das séries iniciais.

O título é uma paródia do poema "Educação pela Pedra", do pernambucano João Cabral de Melo Neto. (Comecei a ler no Rio uma biografia dele, que me provocou engulhos na primeira parte, ao tratar, quase como elogio, da oligarquia usineira de Pernambuco, origem de João Cabral, e da qual o poeta se orgulhava.)

Tive engulhos porque as origens de João Cabral batem de frente contra a minha falta de origens naquele mesmo lugar (e o Rio me lembra Recife, o cheiro, o mar e certa geografia...). Claro que isso nada tem a ver com a beleza exata da poesia de Cabral. Ele que, além do mais, era especialista em poemas sobre rios.

A boa biografia —"João Cabral de Melo Neto: Uma Biografia", de Ivan Marques— conta que o poeta veio ao Rio em 1940 pela primeira vez, aos 20 anos de idade, para conhecer, por meio do também poeta Murilo Mendes, o também poeta Carlos Drummond de Andrade. Era outro Rio, mas o mesmo. A educação pelo Rio, de um lado.

De outro lado, achei o Rio absolutamente mal-educado e agressivo, cidade barulhenta, onde os motoristas buzinam excessivamente e as pessoas falam alto demais nas ruas. Não se trata de o Rio ser pior do que São Paulo, no geral. Mas é diferente (tem sua própria lei, no trânsito e no morro —a falta de lei, na verdade).

Me disseram que minha impressão da falta de educação é porque fiquei em Copacabana, onde a deterioração urbana é mais visível. Tivesse ficado em Ipanema, na Gávea ou no Leblon etc. teria sido outra coisa. Outra coisa: o Rio é uma ditadura de classe. Educação pelo Rio.

Não é que o Rio seja pior do que São Paulo no que se refere à atmosfera de crime e medo —mas, no Rio, o grau de crueldade é mais alto. O Rio é o mais criminal dos estados criminais do Brasil. É lá que se matam mais negros mais livremente, com permissão dos órgãos públicos.

Segundo a Rede de Observatórios de Segurança, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, a polícia do Rio matou, em 2020, 939 negros (contra 153 brancos). Já a polícia de São Paulo, no mesmo ano, matou 488 negros (contra 281 brancos). É a educação pelo Rio, por comparação com o resto.

"São Paulo é mais organizado. Até a pobreza é mais organizada em São Paulo", me disse um taxista do Rio. Taxistas do Rio seriam protagonistas do meu romance de costumes, personagens-chave para uma educação pelo Rio. Assim é que um segundo taxista quis nos vender um sítio em Xerém, Duque de Caxias, Baixada Fluminense.

Ele nos mostrou as fotos, "sítio com piscina, lindo", disse o motorista evangélico, da Assembleia de Deus, "e tudo como posse, sem escritura, porque lá ninguém paga imposto pra governo não. E Xerém é a cidade mais segura do Rio. Não troco Xerém por Leblon, porque aqui vão roubar teu celular, vão te dar tiro. Em Xerém tem milícia? Tem. Mas é milícia que está com os políticos de lá, e então não cobram taxa dos moradores, os políticos não querem isso lá. E se sabem de alguém no tráfico de drogas lá, eles matam na hora. Aquilo é um paraíso".

É o Rio mafioso. Impossível entender a escolha de políticos que o Rio faz: Sérgio Cabral, Witzel, Garotinho são a cara da contravenção, do arbítrio, do racismo, da opressão de classe, da impunidade para a matança generalizada.

O Rio tortura, mata crianças negras sem origem, que roubam passarinhos. Não se pode esquecer que o Rio é o berço do bolsonarismo, a merda em que o país afunda. Em São Paulo, pelo menos se sabe de onde vêm a perversidade e a desfaçatez de um João Doria, por exemplo. O Rio é obscuro-claro, cristão-anticristo.

Minha conclusão é a de que não posso viver no Rio, porque a catástrofe fluminense-carioca é ainda maior do que a minha catástrofe pessoal (de alguém que não fez nada para evitar que seu próprio país caísse na merda em que se encontra). Não fiz nada. O Rio me jogou na cara essa impotência.

O Rio de Janeiro é pedra sem poesia, embora empertigado (com certa razão, porque ali viveram tantos nomes importantes: Manuel Bandeira, Drummond de Andrade, Clarice Lispector, João Cabral). É provinciano: ostenta instituições inúteis, imperiais como a Academia Brasileira de Letras, e se curva à hegemonia nefasta da Rede Globo.

O Rio daria um romance de costumes ruim, fosse eu quem o escrevesse. É que o Rio se acha, uma ditadura de classe maravilhada consigo mesma. Mas o Rio é apenas nossa própria catástrofe nacional escorregando morro abaixo.


Texto de Marilene Felinto, na Folha de São Paulo

O que sei eu? É o que pergunta Stefan Zweig antes de mudar o mundo


A melhor coisa do meu ano de 2021 foi ter regressado aos livros de Stefan Zweig. Que estupidez a minha! Li Zweig nos verdes anos e gostei da ficção. O seu "Beware of Pity", salvo melhor opinião, é um dos grandes romances do século 20 e um aviso sério sobre os abismos do "ressentimento", no sentido nietzschiano do termo. Se fosse diretor de cinema, já teria feito a adaptação desse livro para filme.

Já os ensaios, que são o melhor de Zweig, não me impressionaram da mesma forma. Por quê? Sei lá por quê. A estupidez tem razões que a razão desconhece.

Esse ano, regressei a eles. São soberbos e, mais que isso, intemporais. Falam diretamente para o nosso tempo, em parte por terem sido escritos quando Zweig contemplava a derrocada da Europa e o seu próprio naufrágio pessoal, que terminou como terminou em Petrópolis.

Hoje, com novas ansiedades a tomarem conta dos contemporâneos —a pandemia interminável; a sombra de uma guerra na Ucrânia e de outra em Taiwan; o fanatismo ideológico que destroça as democracias ocidentais etc.— os ensaios são objetos de reflexão e consolação. Alguém passou por tudo isso primeiro.

Já falei aqui do retrato que dedicou a Erasmo de Roterdã. Mas é o texto sobre Montaigne que mais me impressionou. É um ensaio de fim de vida, que hoje se lê como se fosse o testamento de Zweig. Também por isso, é uma prosa desencantada, que soa estranha aos nossos ouvidos progressistas.

A primeira ideia que Zweig desautoriza é a concepção bem moderna de que o progresso é uma estrada com um único sentido. Essa concepção nasceu com o cristianismo e foi depois secularizada pelo o iluminismo continental: a humanidade caminhará sempre para um estado superior de existência; mesmo os seus percalços não passam de acidentes momentâneos, que não mudam o rumo da jornada gloriosa.

Zweig, através de Montaigne, mergulha nos clássicos. Que, obviamente, tinham uma outra concepção de tempo: uma concepção circular, e não linear, segundo a qual tudo é efêmero e regressivo. Democracia?
É apenas a antecâmara da tirania, que depois será suplantada por uma aristocracia iluminada, até cair na timocracia, e depois na oligarquia, até chegar novamente à democracia. Quem pode dizer que Platão estava errado? Sim, quem pode garantir que, depois da trégua, não virá uma nova era de desolação?

Aconteceu. Na Alemanha, nos anos 1930, para desespero de Zweig. E na Europa humanista de Erasmo e de Montaigne, que soçobrou às mãos do fanatismo religioso pós-reformista.

Perante o caos, Montaigne entendeu (tal como Zweig) que o mais importante era salvar a sua liberdade interior, razão pela qual recuou para a famosa torre e para a composição dos seus "Ensaios".

Há autores que nunca lhe perdoaram: em hora de aperto, desertar é uma covardia e uma irresponsabilidade.

Não creio. Quando existe excesso de paixão nos outros, pretender manter a chama da razão, da tolerância e do ceticismo é como tentar parar as ondas do mar com os próprios dedos. Uma missão patética e inglória.

É por isso que os "Ensaios" sobreviveram: porque não tentam mudar os outros, mas apenas mudar um único homem —Michel de Montaigne. Mais ainda: mudá-lo pelo exercício metódico da dúvida.

É um gesto revolucionário: quando existe excesso de dogmatismo, haver alguém que se atreve a perguntar "que sais-je?" ("que sei eu?") ganha os contornos de uma blasfêmia.

Ler Zweig e os seus alter egos, mais que um prazer, é um exercício de imaginação: o que seria do nosso tempo se as pessoas, antes de quererem mudar o mundo, começassem por elas próprias? E o que seria dessas pessoas se, sozinhas e em silêncio, perguntassem pela primeira vez na vida: mas, afinal, o que sei eu?


Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo

Minha geração sobreviveu à Disney e à Capricho, mas ainda traz sequelas graves


Hoje acordei naqueles dias. Não, esta não é mais uma crônica sobre menstruação. Para mim, a expressão "naqueles dias", um eufemismo para "expelindo sangue pela vagina", pode ter muitos significados. Tem dias que a gente acorda de ressaca, dias em que a gente acorda de TPM, dias que a gente acorda com a autoestima de um paninho de prato com uma mensagem bíblica cheia de erros de pontuação, dias que a gente acorda mais gostosa do que um brigadeiro de pistache e dias que a gente acorda se sentindo a pior feminista do mundo. É sobre esses dias, que geralmente evitamos falar, que estou falando agora.

Se você é mulher e não se considera feminista, eu não sei nem por onde começar. O fato de você ter sido alfabetizada e conseguir ler este texto é uma de tantas conquistas fundamentais do movimento que você critica. Mas este texto não é sobre você.

É sobre você, mulher engajada na luta pela igualdade entre os gêneros. E sobre as batalhas internas que essa luta demanda, das quais nem sempre é possível sair vitoriosa. A desconstrução é um processo, e ler "O Segundo Sexo" não nos protege automaticamente de sentir inveja da cinturinha alheia nem de se humilhar por causa de boy lixo.

Minha geração sobreviveu aos filmes de princesas da Disney e à revista Capricho, mas ainda traz sequelas profundas. É por isso que nem sempre conseguimos ser feministas exemplares e caímos, mais uma vez, na armadilha que o patriarcado preparou para nós: o sentimento de culpa e desconforto por não sermos perfeitas.

A vida real não é uma thread do Twitter. Se o mito da perfeição feminina já oprimia mulheres, criando ideais inatingíveis, com sua versão 2.0, o mito da perfeição feminista, não poderia ser diferente.

Quando acordo com a pior feminista do mundo me encarando no espelho do banheiro, sei que não estou sozinha. Ela se parece muito comigo, mas também com muitas mulheres que conheço. Devo ter sororidade com essa vaca? Sem dúvida.

Ela parece surgir das sombras para me lembrar que também devemos lutar pelo direito de errar sem perder nossas carteirinhas. Se não olharmos para o pior de nós, a transformação que buscamos —um processo comumente reduzido ao termo "empoderamento"— será tão improvável quanto um conto de fadas igual aos que crescemos assistindo.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

L'amour (trigina)


Segundo minha amiga Fernanda, não é surto maníaco, mas surto divorcíaco ou separídico, ou transtorno de separabilidade. A amiga do momento sempre dura cerca de uns cinco anos, então temos tempo. Mando 45 áudios pra ela. Penso que sou homoafetiva ou apenas lésbica ou apenas bissexual ou pra que ser alguma coisa que precisa de definição? Fernanda diz que eu não preciso da Lamotrigina. Eu digo que preciso de "l’amour", e ela responde: "Você é gloriosa!".

Ricardo acha que estou deslumbrada com Fernanda. Eu já estive deslumbrada com Ricardo. Eu nunca perdi minha capacidade de me deslumbrar com as pessoas, e isso, os mais inseguros não sabem, é uma alegria deliciosamente antiga e primitiva.

Eu canto tão alto no carro que vivo sem voz. Talvez eu tenha lambido o rosto dos meus quatro melhores amigos. Fernanda diz que muita gente se separa e fica depressiva e que ficar maníaca é melhor. Acontece que não durmo, como pouco e passo o dia eufórica como se daqui a dez minutos fosse meu baile de debutante e o Oscar Isaac fosse dançar comigo.

Meu psiquiatra acha que um cheirinho de Lamotrigina pode resolver. Só um cheirinho, ele diz. Não é que você tem a doença, ele diz. Você tem só um cheirinho dela, ele diz. Não é que você alugou um prédio inteiro, você apenas ia dar um jantar pra nove pessoas e elas viraram 85 e você precisou alugar 60 pratos e 60 copos e 60 talheres e 60 taças faltando duas horas pra festa. Mas tudo bem. Um cheirinho.

Um amigo diz que estou revivendo a adolescência. Vejam vocês: homens podem reencontrar semanalmente a adolescência, a juventude e até mesmo a infância. Mas a mulher cuidadora-matrona-parideira-amamentadora não pode ser solteira, fazer tatuagens, dar festas e beijar na boca. Quer dizer, isso na cabeça deles. E não estou brigando com ninguém, estou apenas expondo minha vida e meus pensamentos porque tenho um cheirinho da doença.

Meu ex-marido diz que não é normal eu marcar uma tatuagem e voltar com seis. Eu digo que agora são ao todo 13 tatuagens, que é o número que salvará 2022. Meu psicanalista diz que há muito tempo eu topei e banquei ser assim e que está tudo bem. Assim "meio louca"? Ele responde: "Você acha que ‘louca’ é a palavra?". Eu falo que me sinto viva. Às vezes tanto que fico exausta no fim do dia. Tanto que preciso chorar pra dormir. Ele diz que acha que está tudo bem. Eu peço meu analista em namoro, em casamento, me declaro, e suspiro e digo que ele me dá espasmos de vitória a cada frase. Ouvir meu analista é saber que existe alguém no mundo que chega até onde eu chego. Ali no fim do arco-íris do tormento, onde tem um tesouro cheio de venenos. E que isso é sexy e lindo. Ele diz que está tudo bem. Mas marco psiquiatra porque quero uma segunda opinião. E, porque tenho um cheirinho da doença, quero também mais três opiniões e marco mais três médicos.

Anna, que está recém-separada e veio para um jantar na minha casa de biquíni (te entendo tanto, amiga), contou que adotou um cachorro enorme, que sua filha detestou, e foi presencialmente até Paraty para uma Flip que era toda online. Eu entrei no Bumble e conheci dois rapazes: um deles printou meu flerte pra mostrar pros amigos: "olha, não é aquela colunista?", e o outro se transformou "no maior amor da minha vida", sendo que durou 47 minutos. Quem não fica louco no divórcio, bom sujeito não é.

Fui até o terreiro, abracei uma mulher incorporada e falei: "Eu só quero encontrar o meu amor". Ela disse que preciso parar de ser criança e ser mulher. Meu analista diria que ela está errada. Meu analista diria que eu sou mulher e criança e velho da lancha e cachorro e coelho e tudo bem. Eu perco todas as chances com meu analista e com o amor da vida de ontem e com o amor da vida de hoje porque escrevo essas coisas. Mas não sou eu, é o cheirinho da doença. O que eu acho, particularmente, um perfume divino.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

SUS revolucionou saúde brasileira, mesmo com má gestão e pouco dinheiro


Na abertura da Olimpíada de Londres, os britânicos colocaram três letras no centro do gramado: NHS. Referiam-se ao National Health Service, orgulho maior do país. Imagine as críticas, prezada leitora, se tivéssemos feito o mesmo: SUS, no meio do campo naquele espetáculo que foi cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro.

O SUS é a instituição mais vilipendiada da vida brasileira. Só fizemos alguma ideia da sua importância quando nos demos conta de que sem ele a pandemia teria causado uma tragédia ainda mais devastadora.

O NHS, entretanto, é um sistema pequeno comparado ao SUS. É bem mais fácil organizar a saúde num país com 67 milhões de habitantes, dono de um império colonial até ontem, com um dos níveis educacionais mais altos do mundo e renda per capita quase quatro vezes superior à nossa.

Quero ver é levar a saúde para 213 milhões de pessoas, das quais, segundo o IBGE, 52 milhões são pobres e 13 milhões vivem abaixo da linha da pobreza, espalhadas por um território de dimensão continental, com desigualdades de renda abissais. Se somarmos os brasileiros pobres com os que estão na miséria, chegamos à população do Reino Unido.

Digo essas coisas, prezada leitora, por causa de uma reportagem que li no jornal The Guardian, cujo título é "Quase 6 milhões de pessoas estão na lista de espera por tratamento hospitalar na Inglaterra".

A lista de espera por tratamentos não urgentes inclui cirurgias de joelhos, próteses de fêmur, cataratas e muitas outras. Em outubro último, havia 5.975.216 pessoas na fila, portanto um em cada dez cidadãos do Reino Unido.

Segundo a Constituição do NHS, não menos do que 92% dos pacientes devem ser hospitalizados no máximo em 18 semanas, contadas a partir do dia em que o médico generalista pediu a internação. No entanto, 34% (mais de 2 milhões) continuam à espera além desse prazo. Pior, 312 mil aguardam vaga há mais de um ano.

Os trabalhistas acusam o governo conservador de erros administrativos na condução do NHS, que teria entrado na pandemia já com déficit de 100 mil profissionais nos serviços de saúde e 112 mil na assistência social.

Associações que reúnem médicos, enfermeiras e gestores têm alertado que a segurança dos pacientes está em perigo. O Royal College of Emergency Medicine estima que ocorram 6.000 mortes anuais por atendimento inadequado, nos serviços de emergência superlotados. O número de pessoas obrigadas a aguardar mais de 12 horas para conseguir um leito nas emergências ultrapassa 10 mil.

Caro leitor, não apresento esses dados para desmerecer o sistema britânico, um dos melhores do mundo, que foi implementado há mais de 70 anos, mas para mostrar como é difícil oferecer assistência hospitalar universal.

O Brasil dispõe de cerca de 500 mil leitos. No SUS, há dois leitos para cada mil habitantes; número que chega a 3,5 na Saúde Suplementar. Como a Organização Mundial da Saúde considera três leitos por mil habitantes o mínimo necessário, os técnicos calculam que faltam cerca de 150 mil leitos ao sistema público, enquanto sobram vagas nos hospitais particulares.

Internações custam caro e afastam os doentes dos familiares e da comunidade. A tendência moderna é a de investir na atenção primária, para evitar que as pessoas adoeçam e oferecer tratamento domiciliar para as que necessitarem.

O Brasil tem um dos programas de atenção primária mais elogiados do mundo: o Estratégia Saúde da Família, com mais de 42 mil equipes formadas por até 12 agentes de saúde, um auxiliar de enfermagem, um enfermeiro, um médico, um dentista ou técnico em saúde bucal.

Cerca de dois terços da população recebem visitas mensais dos 265 mil agentes de saúde que atendem de casa em casa. Temos mais agentes espalhados pelo país do que soldados nas Forças Armadas. Esse
contingente, em contato com as 43 mil Unidades Básicas de Saúde, tem diminuído e poderá reduzir ainda mais o número de hospitalizações, problema que até um país rico como a Inglaterra não consegue resolver.

Com apenas 33 anos de vida, o SUS é o maior programa de distribuição de renda do país, diante dele o Bolsa Família é uma pequena ajuda.

É um sistema em construção que exige participação ativa de todos nós. Financiamento insuficiente, má gestão e problemas administrativos não lhe faltam, mas ele fez a maior revolução da história da medicina brasileira. Antes de xingá-lo, dobre a língua.


Texto de Drauzio Varella, na Folha de São Paulo.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Você quer que todos saibam que tem sangue saindo da sua vagina?


Poderia ser uma terça como outra qualquer no escritório. E era. Até o momento em que a estagiária de mídias sociais se aproximou da mesa de Jamile, sua colega de trabalho.

"Você teria por acaso um absorvente aí com você? Acabei de ficar menstruada." Jamile reage como se a estagiária tivesse confessado um múltiplo homicídio. Ela tenta disfarçar, aos berros.

"Ah, você quer cocaína?! Poxa, hoje eu tô sem! Mas tenho um contato muito bom, papa fina mesmo, mais pura que a Sandy nos anos 1990!!!"

A estagiária fica extremamente constrangida. Jamile a leva para um canto, agora sussurrando. "Você enlouqueceu? Essas coisas não se falam no escritório. Cheio de homem aqui, se liga."

"Mas qual é o problema?"

"Você quer que os outros saibam que você está menstruada? Que tem sangue e tecido uterino saindo pela sua vagina? Que o seu endométrio está descamando nesse exato segundo?"

"Ué. Normal."

"Normal pra você. Normal pra mim. Normal para todo mundo que tem um útero. Agora o Cesinha do financeiro não está preparado psicologicamente pra isso. Quer causar uma pane no sistema do cara?"

"Que exagero. Bom, eu vou na farmácia e compro um…"

Jamile a interrompe, gritando mais uma vez. "Remédio para sarna humana?! Espero que a ivermectina não esteja em falta!"

"Não, gente, eu não estou com sarna, pelo amor de Deus."

Jamile volta a falar baixo: "Se você não quiser ir até a farmácia, tem outro jeito. Na mão da Marluce é mais barato".

"Ótimo, vou lá falar com ela."

"Calma lá, tem todo um protocolo. Você vai até a mesa da Marluce, vai imitar uma coruja. Mas tem que ser coruja buraqueira, o pio dela é mais agudo. Aí Marluce vai dar uma almofada de hemorróida. O item que você precisa está entocado no enchimento. Para distrair o pessoal, você encaixa a almofada no pescoço como se estivesse tendo um surto psicótico e grita EU SOU DEUS! Depois é só fazer um rolamento até o banheiro. Ninguém vai perceber."

"Prefiro não fazer isso."

"Okay. Vamos para o plano B. Deixa eu ligar para o ramal da Marluce. Alô? Marluce? Alerta vermelho. Repito. Alerta vermelho."

Em menos de um minuto, Marluce aparece da copa, de onde sai muita fumaça, gritando FOGO. Os funcionários se levantam para evacuar o prédio às pressas. No meio dessa confusão, Jamile estende um absorvente para a estagiária.

"De nada."


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

Governo promove farra do garimpo de ouro na Amazônia


Para quem já admitiu que "o garimpo é um vício, está no sangue", o compadre Grota deve ser um herói, merecedor de ocupar a galeria dos maiorais, ao lado do ditador Augusto Pinochet, do torturador Brilhante Ustra e do Major Curió, também torturador e líder garimpeiro.

Compadre Grota é o nome de guerra de Heverton Soares, um dos narcotraficantes —o outro é Silvio Berri Júnior, ex-piloto de avião de Fernandinho Beira-Mar— apontados pela Polícia Federal como chefes de organizações criminosas no Pará e que ganharam do governo o direito de explorar uma área de mais de 810 hectares de garimpo de ouro.

As permissões foram outorgadas e efetivadas pela Agência Nacional de Mineração entre 2020 e 2021. Elas são válidas para Itaituba, um município paraense batizado de Cidade Pepita pela grande quantidade de jazidas encontradas quase na superfície do solo. Dá até para imaginar o presidente da República, em seus momentos de tédio e aflição em Brasília, com vontade de jogar tudo para o alto e ir "faiscar", como costumava fazer nos tempos de capitão do Exército.

O general Augusto Heleno também curte um garimpo. Ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência e um dos principais conselheiros de Bolsonaro, Heleno autorizou o avanço de sete projetos de exploração de ouro numa região praticamente intocada da Amazônia, um lugar de fronteira com a Colômbia e a Venezuela conhecido como Cabeça do Cachorro, onde vivem 23 etnias indígenas. O empenho do general não surpreende, se lembrarmos que o regime militar permitiu e incentivou Serra Pelada, no início dos anos 80.

Um estudo do Instituto Escolhas revelou que, das quase 111 toneladas de ouro exportadas em 2020, 17% saíram sem registro de terras indígenas ou de Unidades de Conservação da Amazônia. O ouro ilegal chegou a Canadá, Suíça, Polônia, Reino Unido, Emirados Árabes, Itália, Índia. Bye, bye, Brasil.


Texto de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo