sexta-feira, 30 de outubro de 2020

A arte da inveja

 Esses dias eu estava em uma reunião de trabalho quando comecei a sentir inveja. E não era pouca, não. Era da brava. O cabelo da moça, o corpo, a voz, a boca, a idade, os brincos grandes e verdes, as maçãs do rosto buliçosas, as ideias, o bronzeado, a atenção que ela recebia. Meu coração disparou, minhas unhas afundaram nas palmas, lembrei que preciso deixar a magnésia bisurada na bolsa. Fiquei rapidamente muito engraçadinha e agitada para depois emudecer, com o corpo pesado e dolorido. Cansada, inflamada e vencida.

Primeiro, eu achei que queria morar naquela jovem inteligente, doce e de beleza incômoda, depois tive certeza de que só queria destruí-la. Foram horas digerindo minha derrota vexatória até entender o tamanho da liberdade artística que aquela experiência me proporcionaria.

Pensei nos meus amigos escritores algorítmicos. Presos ao que precisam escrever. Ao que está na moda dizer. Ao que pega bem ser. Eles até recebem ótimas resenhas, mas, por Deus, como são chatos! Alguns mudam a voz, o jeito de olhar. Ao menos para mim, o seriíssimo estrabismo que lançam para o horizonte, sem a gentileza da autoironia, mata a arte e o meu interesse todos os dias. Gente que se leva a sério demais porque leva a sério demais os problemas da sociedade. Gente que faz harmonização facial antes de ir dormir no chão de uma cabana indígena para sair bem nas fotos.

Enfim, tudo isso para dizer que não há licença poética maior do que, em tempos de infinitos livros sobre sororidade, lançar esta crônica desnecessária sobre inveja. E, se der tempo, também sobre falsidade.

Ah, amigos, eu estava humilhada. Já tem uns dois anos que minhas axilas caíram. Eu tento de tudo no pilates, mas elas não voltam para o lugar. Meu sovaco é uma boquinha triste olhando para o meu passado de glórias físicas. Bunda e peitos caem, e eu estava preparada para isso. Mas nenhuma mulher havia me contado das axilas. Era um dia muito quente, e aquela roteirista de 25 anos exibia seus sovacos atléticos diante do meu nariz. E ainda dava boas ideias e havia escrito ótimos diálogos. Ou seja: nem o consolo que sempre me dou, “pelo menos sou mais esperta que ela”, estava rolando naquele momento.

E que liberdade, amigos! Odiar meu cabelo perante aquela beldade. “Ah, mas temos que amar nossos pelos o tempo todo e jamais gritar com nossos filhos e meditar e peidar linhaça e ter gratidão pelas nossas rugas e pela nossa pança molenga e arrotar kombucha.” Meu cabelo tem um buraco pós-amamentação do lado esquerdo e um redemoinho escroto do lado direito que faz minha franja levantar um topete anos 90 ensebado e me deixa com uma cara de “quem é essa tia meio equivocada e abatida?”.

Depois dos 40 anos, muitas coisas desagradáveis acontecem com a gente. A começar pelo sol, que não nos deixa mais saudáveis, mas sim parecendo que alguém tomou todinho e espirrou com a boca cheia em cima de nós. Aquela garota, a ninfa de 25 anos da inesquecível e odiosa reunião, se divertiu muito ao ver que aumentei as letras do meu celular porque já não enxergo direito nem mesmo com meus óculos de leitura. “Ai, para, você é tão engraçada.” Que bom, querida, que estou fazendo seu dia melhor. Seu dia de mocinha desejada que mora sozinha e ainda tem essa pele firme que não acorda toda amassada por um simples lençol. Que bom, e, espero, talvez um ônibus te encontre na esquina quando você sair daqui. Literatura: desejo de meter a cara belíssima de uma jovem roteirista no meu menisco lesionado. Inveja: poesia, ruptura, arte puríssima.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

O tempo

 Carrego meus fantasmas

Dentro de um armário

Entalhado no peito

Eu sou o que tenho feito

Apesar do grande defeito,

De sonhar mais que o pássaro,

Que voa sem fazer cálculos.

Eu sou eu e os meus cacos

Uma caneca de louça sem asa

Uma latinha de pastilhas

Fotos de minhas filhas

Lembranças feito ilhas

De um futuro no passado,

O presente encarcerado,

Lobo depois das trilhas,

O olhar depois das chuvas.

Do blogue do Juremir Machado da Silva

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Um irmão serve pra você saber que não está delirando

 Na minha infância, éramos quatro irmãos e eu tinha um sonho: ser filho único. Calculava que, se não fossem meus irmãos, teria tudo em triplo: carinho, atenção, brinquedos.

Achava que o Riquinho tinha aquele império porque não tinha irmãos —bastava que meus irmãos desaparecessem que brotaria um McDonald's na garagem e Cavaleiros do Zodíaco no armário. Em algum momento, percebi que o Riquinho tinha uma existência miserável, implorando por amigos, enquanto eu tinha o maior tesouro: testemunhas.

O irmão é a única pessoa do mundo que sabe o que significa ser filho dos seus pais e conhece esse drama em toda a sua complexidade. Ninguém mais serviu de cobaia pra essa experiência. Levando em conta que toda infância traumatiza, o único alívio que podemos dar a um filho é um companheiro de traumas. Você não convida uma pessoa pra uma festa sem o habitual "mais um".

Não há nada mais confortante que falar mal dos pais com quem conhece a causa. Só o irmão tem o alvará que permite espinafrar sua mãe, por ser também mãe dele.

O filho único está condenado a levar pro túmulo a experiência ímpar que só ele viveu. Deve ser como assistir a uma série que ninguém mais pode ver.

Amyr Klink me intriga. Não porque atravessou o Atlântico remando, mas porque escolheu fazer isso sozinho. Imagina você encontrar uma baleia e não ter alguém pra falar: "Cacete. Isso. Realmente. Aconteceu?". Quando você está sozinho, tudo é alucinação —um irmão serve pra garantir que você não está delirando.

Todo o mundo deveria ter direito a pelo menos um parceiro de jornada. A China fez a lei do filho único. Queria fazer a lei do filho duplo. Tudo bem não ter filhos. Mas pra quem teve um, acho que a lei deveria obrigar a ter outro —subsidiado, claro, pelo Estado, com anos de licença paga pra ambos os pais. Interessa a todos nós uma nação mais fraterna.

Dito isso, só tive uma filha, e estamos empurrando a próxima gravidez com a barriga. Nunca parece o momento de dizer: é agora. Quanto mais tempo passa, mais parece loucura voltar à estaca zero, à cólica, às fraldas e às noites sem sono. Taí: se tivesse lei que nos obrigasse, já tínhamos tido.

Teremos! Preciso que a minha filha tenha alguém pra compartilhar a delícia que deve ser falar mal de mim —esse prazer que o leitor da Folha já conhece há tanto tempo.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

domingo, 25 de outubro de 2020

Fomos e seremos um experimento aleatório, único, da natureza

 É difícil contar o número de estrelas no firmamento. Primeiro, porque são muitas; depois, como estar certos de que encontramos todas?

Esse problema é discutido no livro "Space at the Speed of of Light", escrito por Rebecca Smerthurst, astrofísica da Universidade de Oxford.

Para o cálculo do número de estrelas existentes nas galáxias que compõem o Universo, a autora se concentrou nos dados das fotografias obtidas pelo Hubble Space Telescope, em órbita ao redor da Terra desde 1990, com a função de colher imagens de estruturas desconhecidas ou pouco observadas, para além da Via Láctea.

Os astrônomos têm usado essas informações, para perscrutar o espaço mais escuro do Universo conhecido: a constelação Fornax, localizada no hemisfério sul.

A partir do número de galáxias presentes nessa constelação, eles estimam que no Universo haveria no mínimo 100 trilhões de galáxias.

Como cada uma contém em média 100 bilhões de estrelas, o número total de estrelas seria da ordem de 100 sextilhões, ou seja, 100.000.000.000.000. 000.000.000.

Imagine, leitora, que haja condições favoráveis ao surgimento da vida apenas em um, de cada quintilhão desses corpos celestes. Existiriam, então, algumas centenas de milhares de planetas na vastidão do espaço, em que a competição das espécies pelos recursos e a seleção natural poderiam levar ao aparecimento de seres inteligentes.

A existência deles responderia à eterna questão filosófica: estamos sozinhos no Universo?

Nossos ancestrais mais distantes, as primeiras bactérias, surgiram assim que a Terra esfriou o suficiente, há 3,8 bilhões de anos. Portanto, o aparecimento aleatório da vida não parece fenômeno tão difícil de ocorrer.

No entanto, das 50 bilhões de espécies que um dia viveram ou ainda habitam nosso planeta, só uma levou ao gênero Homo, 2,5 a 3,2 milhões de anos atrás. Nesse gênero, sobreviveu só o Homo sapiens, espécie capaz de elaborar raciocínios abstratos, dominar a linguagem, a resolução de problemas complexos e a composição de sinfonias. Na história da vida na Terra, o Homo sapiens ocupa 0,005% do tempo.

A evolução não tem propósito algum, não segue qualquer linha na direção de determinado objetivo, não olha o interesse da espécie, mas o do indivíduo mais apto a espalhar seus genes.

As bactérias, seres unicelulares sem nenhuma atividade semelhante ao pensamento mais rudimentar, constituem o maior sucesso evolutivo de todos os tempos: 3,8 bilhões de anos. E ainda estão por aqui, sem dar sinal de que serão extintas ou deixarão de ser o que sempre foram: seres unicelulares.

Se a criação da vida pode ser repetida com relativa facilidade em outros planetas, o aparecimento da alta inteligência deve ser fenômeno muito raro, uma vez que apenas uma espécie entre 50 bilhões desenvolveu essa habilidade.

Imaginar que em algum das centenas de milhares de planetas habitados por alguma forma de vida surgiriam seres com capacidade cognitiva tão semelhante à nossa que tornasse viável a comunicação implicaria admitir não só que as condições geológicas e climáticas tenham sido idênticas às da Terra, mas que as pressões ecológicas estiveram sincronizadas às nossas durante milhões de anos, de modo a repetir as incontáveis mutações sofridas por nossos ancestrais, na longa jornada da unicelularidade, à vida multicelular que levou aos animais vertebrados, aos mamíferos e ao homem.

Vamos citar apenas um, entre centenas de milhares de eventos ocasionais que conduziram ao Homo sapiens, por mecanismo de seleção natural.

Se, 65 milhões de anos atrás, não caísse um meteoro no México, os mamíferos estariam limitados até hoje a grupos de pequenos roedores noturnos, apavorados pela presença de dinossauros na vizinhança. Qual a probabilidade de ocorrerem eventos decisivos como esse, na mesma sequência temporal, em outro planeta?

Vamos imaginar que, a despeito da alta improbabilidade, identificássemos extraterrestres em tudo semelhantes a nós; digamos, com 99% de identidade genética.

Ainda assim, estaríamos sós, não haveria comunicação possível. Esse é o número de genes que compartilhamos com os chimpanzés.

Fomos e seremos um experimento aleatório, único, da natureza, mesmo que venhamos a descobrir que o Universo conhecido é apenas um dos trilhões de outros espalhados pelo espaço infinito.


Texto de Drauzio Varella, na Folha de São Paulo

Quarentena, gim-tônica e Serasa

 Escrevo esta coluna bêbado, 10 kg acima do meu peso, num teclado besuntado de maionese e com o nome no Serasa: sou um quarentão, mas pode me chamar de quarentener.

Em março eu estava na melhor forma da minha vida. Vinha treinando havia meses para uma meia maratona. Bebia moderadamente. Comia quinoa. Brócolis. Kiwi. Fazia ginástica funcional. Meu assoalho pélvico tava tinindo como um porcelanato com Pinho Sol. Cheguei perto, juro,
de ter uma barriga de tanquinho. Então veio o corona.

No primeiro mês, tentei manter a normalidade. Para mim e para as crianças. Aquela pose austera e meio boba, tipo: não é porque estou sozinho que posso comer de boca aberta.

Tudo mudou em abril, quando li uma matéria no New York Times. No artigo, uma nutricionista sugeria que a quarentena não era o momento de educar as crianças para uma alimentação saudável. Elas já estavam sem escola, sem avós, sem a pracinha, sem amigos; talvez, nos dois meses que deveria durar a quarentena, fosse mais importante reconfortar suas pequenas almas com batata frita e ovo de páscoa recheado de chocotone do que proporcionar aos seus diminutos corpos a quantidade ideal de fibras,
betacaroteno e flavonoides.

Fechei o iPad, abri um Diamante Negro de 500 gramas pros meus filhos e —numa regra de três autoindulgente— escancarei um caminho sem volta pra mim.

Ué, se as crianças merecem açúcar e afeto, pensei, eu também mereço os meus correlatos. Começava aí um mergulho perigoso no alcoolismo, no hamburguismo, no pizzismo, no sedentarismo e no amazonismo —o vício de entrar na Amazon quase todo dia e comprar
coisas absolutamente inúteis.

Comprei: um estilingue que seria aprovado pelo COI, caso estilingue fosse esporte olímpico, um microscópio, uma barraca de camping, uma luminária à energia solar, um pandeiro, formas de gelo que parecem ter sido desenvolvidas pela Nasa, um saca-rolhas elétrico, um fone de ouvidos sem fio, outro fone de ouvidos sem fio, mais um fone de ouvidos sem fio, um moedor de carne manual, um moedor de carne elétrico, umas rodelas de metal pra moldar hambúrguer, umas minitampas de panela pra derreter o queijo do hambúrguer e uma quantidade de livros que três gerações dos meus descendentes não darão conta de ler.

Pros meus filhos: bastões luminescentes de camping, 28 bonecos dos Power Rangers, 189 mil jogos de iPad, caixa de lápis de cor, caixa de massinha, caixa de argila, 25 bonecas LOL (aí que entrei pro Serasa; uma Ferrari é mais barata do que as bonecas LOL).

Foi emocionante e divertido no começo. Eu trabalhava de casa todo dia, das dez às cinco e cinquenta e nove. Assim que dava seis da tarde, porém, eu sextava furiosamente.

Por dois meses, como disse a nutricionista do NYT, tudo bem. Mas a pandemia, ao contrário do que ela previa, não acabou. E essa existência mezzo saloon de velho oeste, mezzo Passaporte da Alegria no Playcenter, oito meses depois, tá cobrando seu preço. Pro meu cartão de crédito. Pras minhas coronárias. Pra educação dos meus filhos.

Num mesmo dia o Dani perguntou: “Papai, o que a gente vai comprar hoje?”. E a Olivia: “Papai, se eu te falar uma coisa, você não vai ficar bravo?”. “Claro que não, filhota, o que é?.” “É que a sua barriga tá ficando engraçada.”

Decidi que tinha chegado ao fundo do poço. Precisava tomar uma atitude. Botei os dois pra dormir, fiz uma gim-tônica, entrei na Amazon e comprei um telescópio.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Com Pelé na Ponte Aérea

 Foi numa tarde dos anos 80. Pelé entrou no avião da ponte aérea e, num segundo, as portas se fecharam, como se só estivessem esperando por ele. Sentado no corredor da segunda fileira, não tive como não vê-lo —mesmo porque Pelé usava paletó laranja, camisa violeta e gravata rosa-choque, seu guarda-roupa na época. E, por acaso, sua fileira era a minha. Como um jato, Pelé passou por mim e pelo homem na poltrona do meio, sentou-se à janela e, ato contínuo, levou a mão à testa cobrindo os olhos, como se tivesse acabado de cair no sono. E assim ficou do Rio a São Paulo, embora eu não o ouvisse ressonar.

Era óbvio que fingia dormir, e nada mais compreensível. Era a sua única maneira de passar os 45 minutos do voo sem ter alguém ao seu lado dizendo-lhe que, apesar de ele ter feito uma média de quatro gols por semana no Corinthians, o sujeito o admirava. Ou se era verdade que tinha perdido gols de propósito para que o 1.000º fosse no Maracanã. Fazer de conta que cochilava era essencial para evitar o contato olho a olho —aquele que, uma vez estabelecido, tacitamente autoriza o fã a se dirigir ao ídolo.

Pelé não imaginava que, a duas poltronas da sua, estava alguém que sabia mais de sua vida do que ele poderia pensar. No caso, eu. E só porque tínhamos alguém em comum: o jornalista Hans Henningsen, o famoso Marinheiro Sueco, consagrado por Nelson Rodrigues.

Hans exercia grande ascendência pessoal sobre Pelé, que lhe devia contatos, conselhos e orientações. E era mais que um amigo para mim. Era um irmão mais velho, e não havia segredos entre nós. Nem mesmo os segredos de Pelé.

Evidente que sempre guardei comigo o Pelé desconhecido que, às vezes, ele me descrevia: o homem que se debatia entre o herói, o potentado, o cidadão do mundo e o Edson ingênuo, inseguro, capaz de erros terríveis, dolorosamente humano —que no fundo é.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo. 

Civilização, ética e ódio

 Numa obra que se tornou um clássico da literatura universal, Joseph Conrad descreve um personagem que sofre com as virtudes éticas do protagonista do livro, o "Lord Jim", por ser ele capaz de, frente a um erro, assumir a culpa, quando outros fugiram de sua responsabilidade, e de buscar um caminho para purgar o mal que tinha feito, colocando-se, com grande risco pessoal, a serviço dos outros de forma generosa e empática.

Jim era longe de perfeito, mas havia, em sua obstinada atitude, um despojamento e uma ingenuidade que chegam a comover e, por isso mesmo, a despertar ódio e desejo de vingança em seu adversário, o pirata chamado no livro de "gentleman Brown", que se sente ameaçado por suas qualidades. E Brown trabalhará para destruir Jim.

Ao ler a obra, em meio à pandemia, não pude deixar de pensar no espírito do tempo em que vivemos. O ódio vigente parece resultar não só do sofrimento vivido com a crise, mas de certa repugnância sentida frente ao fortalecimento de uma atitude de empatia, da inclusão do outro num espaço percebido antes como um clube de privilégios e da comunicação não agressiva com quem pensa diferente.

Ou seja, o processo civilizatório que demanda um esforço em direção a uma sociedade em que não só nossos direitos exclusivos sejam respeitados, mas os dos outros também, tira-nos da zona de conforto e nos traz a sensação de perdas. É como se quiséssemos preservar o direito de ofender, de ser "politicamente incorretos", de nos blindarmos da acusação por crimes que atribuímos aos outros.

Mas há algum antídoto matador contra o ódio? Aparentemente não. Essa infelicidade com o sucesso moral dos outros parece não ter cura, pois a existência de pessoas com tais virtudes denuncia as limitações de quem não é capaz de se sacrificar pelo coletivo ou de corrigir eventuais erros cometidos. No fundo é como se, na competição da vida, podemos nos sair melhor se os outros nos forem inferiores inclusive na esfera ética.

Nesse caso, muitos preferem esvaziar palavras de seu significado. "Liberdade de expressão" e "corrupção" têm sido fartamente utilizados para descrever ações do grupo percebido como rival. Masha Geschen, em seu recente livro "Surviving Autocracy", chega a afirmar que o vocabulário usualmente usado em democracias liberais perde poder explicativo ao ser aplicado aos tempos em que vivemos.

Mas há certamente caminhos a serem trilhados para enfrentar esse "zeitgeist". E eles passam por uma educação de qualidade para todos, que preserve conquistas civilizatórias e promova, em crianças e jovens, valores para uma convivência empática e não violenta.


Texto de Claudia Costin, na Folha de São Paulo.

A naturalização da submissão feminina é jogo jogado

 O movimento feminista não entrou em campo queimando sutiãs nos anos 1960. As sufragetes fizeram campanha por direitos, em vários países, desde quase o nascimento do sistema representativo. Os homens votavam por elas, trabalhavam por elas, mandavam nelas. A vida pública era deles. A vida privada também: a longa dominação masculina entre quatro paredes é tão antiga quanto notória.

A bola rolou muito, entre uma Copa e outra, mas as regras do jogo pouco mudaram. Sou a única mulher dentre os dez que se revezam nesta coluna de política, aspirante recentemente incorporada ao plantel de homens titulares.

É que embora a equidade de gênero seja ideia bonita para estampar camisas, muita gente —inclusive mulheres— fica desconfortável com o uniforme. Quando a bola quica, a maioria prefere o banco de reservas. É sempre entre ranger de dentes, burlas, reações, que se escala uma mulher. Vejam-se as caneladas dos partidos com as cotas para candidatas. Nas artes, nas ciências, na política, onde a contestação feminina à dominação masculina entra no gramado, o contra-ataque machista se arma. Dilma Rousseff foi substituída aos 15 do primeiro tempo por muitas razões, mas o fato de ser uma “presidenta” —aliás, o português nem prevê a palavra— não foi irrelevante.

A vez é dos esportes, terreno viril por excelência, no qual as moças começaram de gandulas. O assédio nesta pequena área é centenário. Robinho fez o que fez —“a gente teve relação entre homem e mulher, relações que o homem tem com a mulher”— e disse o que disse —“não estou nem aí”. Ao ganhar cartão vermelho do Judiciário italiano, reconheceu como falta a pulada de cerca —“o erro que eu cometi foi não ter sido fiel à minha esposa”.

O tom da conversa com os amigos, afirmou ao UOL, foi o normal, é “o que homens conversam entre si”. Defendeu atacando: “Infelizmente existe o movimento feminista”, uma equipe de “mulheres que às vezes não são sempre mulheres”.

O jogo entre o esquadrão das vadias e o dos filhos de rainhas (como Robinho define a mãe) transcorre em todas as arenas. Vacilou, apanhou. A violência física é o corretivo quando a violência simbólica não faz bem o serviço. Caso do marmanjo socando a namorada no meio da rua em Ilhéus, indiferente aos que o filmavam. É que nenhum juiz apitara seus pênaltis em quase uma dúzia de BOs que deram em nada.

Se é assim em gramado sob holofotes, na meia luz dos vestiários o pau corre ainda mais solto. A pandemia agravou infrações e subnotificação. Nas alcovas, não há árbitros, só arbítrios. Na concentração forçada em casa no primeiro semestre deste ano, o Anuário do Fórum Nacional de Segurança Pública atesta que 648 mulheres foram mortas por não serem homens ou não lhes obedecerem. Dentre outras 1.861 assassinadas, muitas se encaixariam no padrão, apenas não há como demonstrá-lo. No campeonato nacional, foram 22.201 estupros e 110.791 surras com lesão física. Tudo na zona do agrião do doce lar.

É exuberante o plantel de sádicos furiosos. Nos processos judiciais, seus gols nascem da “violenta emoção”. Transtornam-se porque o time das agredidas não joga como gostaria quem tem o mando de campo. A escalação é democrática, com todas as classes e todas as cores —embora, como em tudo, as negras sejam as mais contundidas.

A naturalização da submissão feminina é jogo jogado. Bolsonaro não criou o esporte, mas esta torcida organizada elegeu este presidente. Por isso, Robinho está seguro de que “em breve as coisas vão voltar ao normal”. Como bolsonarista cristão, conta com a mão de Deus para escapar da zona de rebaixamento.


Texto de Angela Alonso, na Folha de São Paulo

Brasil é o país com menor valorização dos professores, indica estudo internacional

  Brasil é o país onde os professores têm menor prestígio na sociedade. A profissão é vista como sendo desrespeitada e mal paga.

O estudo foi feito pela Varkey Foundation, organização educacional, para avaliar a percepção da população de 35 países sobre a carreira docente. O levantamento considera como os professores são avaliados em relação a outras profissões e percepções implícitas e explícitas.

Na comparação com profissionais de outras áreas, os brasileiros são os que pior avaliam os professores. Em uma escala de 0 a 14 para indicar o status da carreira docente, o Brasil tem nota 5. Na China, a nota é 9. Nos lugares em que os alunos têm melhor desempenho escolar, há maior prestígio.

“Existem muitas razões para explicar por que o status do professor é tão baixo no Brasil. Salário é apenas uma peça de um grande e complexo quebra-cabeça”, diz a fundação.

Para a avaliação sobre a percepção implícita, a pesquisa pediu aos entrevistados para que respondessem para escolher uma palavra que associam mais à condição do professor. As palavras apareciam em pares, por exemplo, confiável/não confiável, bem/mal pago, trabalha muito/pouco, muito/pouco inteligente.

Nesse tipo de avaliação, o Brasil aparece em 25º lugar, à frente de países como Espanha, Colômbia, Argentina, Chile. “Em geral, encontramos que os professores têm baixo status em toda a América Latina, abaixo do restante do mundo.”

A pesquisa foi feita com 42 mil pessoas nos 35 países, em cada local foram 1.200 entrevistados, sendo 200 deles professores. O levantamento busca identificar os fatores que podem melhorar o prestígio da profissão.

“Descobrimos que há uma correlação moderada entre como as pessoas avaliam o salário dos professores em seu país e o quanto os respeitam”, diz o relatório. Gana e Uganda, por exemplo, estão entre as cinco nações em que a percepção é mais positiva.

Uma das correlações encontradas é de que os professores são mais mal avaliados em países em que a profissão é mais fortemente ocupada por mulheres. No Brasil, 64,3% dos professores de ensino médio são do sexo feminino - a proporção é ainda maior nos anos iniciais e na educação infantil.

“Estereótipos de gênero ou sexismo prejudicam o status do professor. Essa descoberta coincide com o que outros estudos já mostraram, que o status das profissões e o valor médio dos salários tende a cair em áreas que são mais ocupadas por mulheres”. O levantamento não encontrou diferenças significantes entre escolas públicas e privadas.

O relatório destaca que aumentar o prestígio e garantir mais respeito aos professores é importante para melhorar o desempenho dos alunos e para que permaneçam na escola. “Se o professor é visto como alguém respeitado e valorizado pela sociedade, isso se reflete em sala de aula”.


Reportagem de Isabel Palhares, na Folha de São Paulo

Eu sou bonita, mas estou cansada

 Eu sou bonita, mas estou cansada. Penso que gostaria de ter camisetas com essa frase, em cores variadas, para usar todos os dias. "Oi, tudo bem? Eu estava em uma reunião de roteiro superimportante, mas tive que parar pra encomendar um galão de água. Estamos sem água. E eu sou bonita, mas estou cansada." "Oi, tudo bem? Vim trazer a papelada do financiamento. Sim, estamos comprando o imóvel juntos, mas, enfim, eu vim sozinha resolver tudo. E eu sou bonita, mas estou cansada." "Oi, vocês têm aquele iogurte com o desenho de uma fazendinha? É o único que a minha filha gosta. E eu sou bonita, mas estou cansada."

Ritinha acorda toda madrugada me chamando. Meu marido e eu chegamos à conclusão que é mais fácil eu ir porque, afinal, eu fui ontem e anteontem. E ela espera que isso se repita amanhã e depois de amanhã. Não podemos mexer na rotininha dela. Esses dias fui atender ao seu chamado, e ela falou, bastante indignada: "Cê tá feia, mamãe". E eu queria ter um pijama com a frase "Eu sou bonita, filha, mas estou cansada".

Está puxado usar roupa de verão. Meu corpo tem o desenho do autodescaso. Não me sobra tempo ou saco pra fazer exercício. E eu respeito se você acha que um corpo pode ser bonito com qualquer forma. E eu admiro se você milita a favor desse corpo que não queima calorias. Mas eu estou com medo de a camada de adiposidade do meu abdômen me causar problemas no coração. Porque não se cuidar é um veneno, e eu bebo dele todos os dias da minha vida sobrecarregada.

Meu cotidiano está dividido entre, depois de horas brincando e cuidando, descolar um ser humaninho delicioso da minha perna; resolver burocracias intermináveis, pois "meu cônjuge é artista"; trabalhar; trabalhar mais um pouco; fazer listas de papelaria, supermercado, farmácia, peixaria, feira... E, quando dá meia-noite, eu apago na cama como se nem 50 horas fossem acabar com a profunda exaustão que sinto.

A sua avó, que não labutava fora, dizia que cansava, lembra? Cuidar da casa? Ela estava certa. E, coitada, ela vivia mesmo acabada. Ela era linda, mas estava precisando de férias. Reza lá à noite pra ela e conta que você é médica, CEO, diretora, professora, babá, cozinheira, motorista de Uber. Que você trabalha feito 8uma camela. E, pra piorar, aquilo tudo que sua avó fazia ainda sobra pra você.

Daí, na terapia de casal, seu mozão diz que sente falta de quando você era leve e divertida. Que está de saco cheio de você viver tensa e reclamando de tudo. E que você não sabe se desligar e curtir.

Uma amiga me ligou na quarta, contando que o chão do boxe tem ficado cheio de tufos de cabelo depois que ela toma banho. Ela achou que o cachorro tivesse invadido o banheiro essa semana, mas era o cabelo dela. Ficamos em silêncio um tempo. Até que ela disse: "Às vezes eu sonho que enfio uma faca de churrasco nas costas do meu marido".

Meu amigo, meu anjo, meu docinho, sua esposa é ótima, é divertida, é bonita, mas está cansada. Vou fazer a camiseta "Eu sou uma deusa soberana, uma gênia imbatível, bonita pacas, mas estou cansada pra cacete". E o leitor macho da Folha se ofende com palavrão. Querido, caguei pra você. Você tem percebido que as mulheres estão cansadas? Que estão doidas pra gritar palavras chulas?

É preciso falar. É preciso bradar. É preciso escrever em caixa-alta no Twitter e fazer uma camiseta com letras neon. Quantas vezes, meu herói urbano, você parou seu trabalho para anotar "saco de lixo pra pia"? Quantas vezes, mister testosterona, você notou que as calças dos seus filhos estão ficando pula-brejo e se antecipou para comprar novas?

Você tem ideia do que é cagar todos os dias sem relaxar, pensando que estão acabando o lenço umedecido e as fraldas e as escovas de dentes e as pastas da Frozen e a sua saúde? Nunca mais eu caguei em paz, caro leitor que odeia quando eu escrevo "cagar". Eu sou fina, eu sou inteligente, eu escrevo bem, mas eu estou cansada.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Vitórias judiciais e novas leis dão força a mães de jovens mortos pela polícia no Rio

 Um mês antes de o Supremo Tribunal Federal decidir limitar as operações policiais em favelas no Rio de Janeiro durante a pandemia do coronavírus, a bibliotecária Catarina da Silveira, 48, buscava informações sobre seu filho Rogério da Silveira Júnior, 21.

Naquele 6 de maio, o estudante que pertencia ao grupo de risco para a Covid-19 decidira romper o isolamento para ir a um churrasco na casa de um primo, na comunidade da Danon, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Estava na rua quando a polícia chegou.

Os agentes dizem que receberam denúncia sobre uma briga de facções por ali e, quando chegaram, foram atacados. Quando os disparos começaram, só Rogério não conseguiu correr, impedido pela artrite reumatóide, doença crônica que afeta as articulações. Levou um tiro na perna e outro no pulmão. Levado pela polícia ao hospital, chegou morto.

“Ele saiu de casa e não voltou. Achei meu filho como desconhecido no hospital porque tiraram os documentos dele, a habilitação e a carteirinha da faculdade. A polícia disse que achou um marginal caído ao solo com rádio e revólver. Bandido nenhum faz gastronomia. Ele sempre estudou, trabalhou, mas era negro”, conta Catarina. A família, de classe média, vive em Niterói, na região metropolitana do Rio.

Desde 5 de junho, uma liminar do Supremo Tribunal Federal determinou que a polícia só pode fazer operações nas favelas fluminenses em casos “absolutamente excepcionais” e com envio de justificativa ao Ministério Público estadual. O número de ações e mortes pela polícia despencou no estado desde então.

“Quero limpar o nome do meu filho e culpabilizar o Estado. Agora foi com ele, mas não é o primeiro e não vai ser o último. Quanto mais a gente se cala, pior é”, diz a bibliotecária. “Estou deixando de ser a Catarina para ser a mãe do Rogério, morto pela polícia.”

A mãe de Rogério ecoa com muitas outras vozes femininas no Rio. Todas tiveram filhos assassinados pelo Estado e buscam forças em uma espécie de terapia de mãe para mãe, na qual se consolam, dividem conselhos sobre trâmites jurídicos, organizam atos e cobram a cobertura dos casos pela imprensa.

Ao gritar contra os abusos, por vezes, conseguem forçar o andamento dos processos para que os agentes sejam sentenciados.

Em 2017, um grupo de mães levou para a frente do Tribunal de Justiça 1.500 cartas escritas por crianças com relatos de violência na Maré, conjunto de favelas da zona norte carioca. Conseguiram uma decisão que obriga a polícia a evitar incursões em horários de entrada e saída escolar, manter ambulâncias acompanhando as ações e viaturas com GPS e câmeras.

Já as Mães de Manguinhos são amicus curiae (“amigas da corte”) da ação no STF que restringiu operações, apelidada de “ADPF das Favelas”.

Mães também conseguiram que o Brasil fosse condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2017, por não prever protocolos para o uso da força e pela injustificada demora em investigar e punir os responsáveis por 26 assassinatos de jovens em duas chacinas na favela Nova Brasília, em 1994 e 1995.

Foi a primeira vez que o país foi condenado pela corte da OEA (Organização dos Estados Americanos) por violência policial. Na ocasião, o órgão determinou que o Brasil criasse metas e políticas de redução da letalidade e violência policial. Mas desde então os números só cresceram.

Essas mulheres ecoam outros movimentos políticos no mundo envolvendo a busca por respostas a mortes violentas, como as Mães da Praça de Maio (Argentina), as Mães dos Estudantes Desaparecidos de Ayotzinapa (México), as Black Mothers do movimento ‪#‎BlackLivesMatter‬ (EUA), as Mães das Vítimas do Estado Colombiano e as Mães da Faixa de Gaza (Palestina).

No Brasil, há uma rede nacional e grupos atuantes no Rio e em São Paulo que acolhem mulheres de estados onde não há coletivos organizados. Mas também há as Mães de Maio do Cerrado, de Goiás, as Mães do Ceará, do Xingu, a Associação das Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Espírito Santo e as Mães de Belo Horizonte, por exemplo.

Em 2016, foi feito o 1º Encontro Internacional das Mães de Vítimas da Violência do Estado, no marco dos dez anos dos Crimes de Maio de 2006 —quando São Paulo viu uma onda de chacinas que culminou na morte de 564 pessoas, a maioria jovens negros e pobres.

As mães cariocas também conseguiram uma lei que instituiu a Semana Estadual das Pessoas Vítimas de Violências, celebrada entre 12 e 19 de maio. A inspiração veio da lei paulista, que havia criado em 2014 a semana que homenageia as mães de vítimas do mês de maio.

Agora, elas cobram a nacionalização da lei e a aprovação de projetos de lei com um fundo de reparação econômica, psíquica e social aos familiares e outro que determina afastamento imediato de policiais que respondem a processos do tipo na Justiça.

Essa briga em nome das vítimas já produziu suas próprias vítimas. Edmea da Silva Euzébio, uma das Mães de Acari, bairro da zona norte do Rio, foi assassinada em 1993. Pioneira, ela investigava o desaparecimento do corpo do seu filho, morto três anos antes.

Outras mães desistem, por medo, descrença na Justiça ou falta de tempo ante a necessidade de trabalhar. Doenças associadas à tristeza pela perda do filho, como a depressão e o infarto, também deixam seu saldo de mortas.

“No início parecia que era só comigo”, diz Catarina. “Todas contam suas histórias. Falam da saudade dos filhos. Me ajudou muito. Mas quinta-feira segue sendo o pior dia”, diz ela sobre as sessões de terapia para tratar o quadro depressivo. “Não saio mais de casa, só fico chorando o dia inteiro. Além de perder, ainda tenho que lutar pela memória, provar que ele não era bandido."

Laura Ramos de Azevedo, 36, perdeu Lucas, 18, assassinado na véspera do ano novo de 2018. Ele ia de moto para a casa da namorada quando levou um tiro de raspão nas costas da polícia, segundo testemunhas. Foi levado pelos PMs ao hospital, onde chegou morto com um tiro no rosto, que o deixou irreconhecível. A mãe desconfia que o disparo tenha sido feito no caminho.

“A gente passa a ser mãe do meliante. Sujam os nossos filhos e sujam a gente. Não sou mais a Laura. Se eu tô de pé, é porque tenho apoio das mães. O mesmo tiro que matou o Lucas, me matou”, conta ela, que está com câncer de pulmão e segue cobrando respostas. “O que é ter um câncer perto da dor de perder um filho?”

Janaina Soares teve um infarto e seis paradas cardíacas em 2018 depois de ver a polícia matar outro adolescente perto da sua casa. A cena remeteu à morte se seu filho, Christian, 13, numa operação da Divisão de Homicídios e da PM em Manguinhos em 2015, algo que desde então a mantinha em depressão.

A morte de Janaina foi mais uma das tantas perdas das Mães de Manguinhos. O grupo surgiu em 2014, após o filho da pedagoga Ana Paula Oliveira, 43, ser assassinado enquanto levava um pavê para a avó. Johnatha de Oliveira tinha 19 anos. Revoltada, ela se uniu a Fátima Pinho, 45, que viu o menino ser baleado na porta de casa e se dispôs a testemunhar.

Fátima havia perdido Paulo Roberto, 18, sete meses antes. Ele saíra 15 dias do sistema prisional, após cumpriu pena por furto, e começou a ser perseguido por PMs por questionar abordagens violentas na favela. Foi espancado até a morte em um beco.

“Nesse encontro entre eu e a Fátima, ela segurou a minha mão e disse: ‘A gente não pode deixar isso para lá. Precisamos lutar pelos nossos filhos’, conta Ana Paula, que já viajou para Holanda, Reino Unido, Suíça, Espanha, EUA e Jamaica para divulgar relatórios sobre mortes violentas e participar de intercâmbio entre familiares de vítimas.

“As pessoas ficam espantadas quando descobrem a violência que nos atinge. A gente vê que é uma luta global e os familiares de lá também são negros."

Nos protestos daqui ela também se reconhece: “Olho para as outras mães e começo a me enxergar como mulher preta, moradora de favela. Quando me pergunto por que fizeram isso com meu filho, minha família... Aí está a resposta”.
Ana Paula, que era tímida e confusa ao falar, hoje não titubeia. Diz que Johnatha a transformou com sua chegada e com sua partida. "Não quero saber como vou falar, quero botar para fora essa dor e quero que as pessoas me ouçam.”
Depois que elas criaram o Mães de Manguinhos e passaram a denunciar os abusos sistematicamente à Defensoria Pública e ao Gaesp (grupo do Ministério Público que investiga casos de mortes por agentes), a violência nas operações diminuiu.
“A gente questionava. Eles botavam fuzil na minha porta dizendo que iam dar um tiro na minha cabeça. Eu lembrava do meu filho. Não tem como uma mãe ver os meninos sendo abordados dessa forma e ficar quieta”, diz Fátima.

“Meu filho deu dois suspiros no meu braço e não voltou mais. Logo quando ele tava se emendando, tomando juízo", diz. Os policiais, afirma, foram condenados a 3 anos, cumpridos em liberdade. "É um alvará para eles matarem mais”, conta a mãe de Paulo Roberto.

A costureira Irone Santiago, 55, é também a mãe de Vitor, 34, que ficou paraplégico e perdeu uma perna quando ia assistir a um jogo do Flamengo e seu carro tomou dez tiros durante uma operação do Exército, em 2015. Hoje ela é ativista na Maré, acumula dois aneurismas, mas diz seguir para que seu filho tenha voz.

“Se existe esse movimento, é porque no passado houve outras mulheres valentes”, diz. “Depois que meu filho levou os tiros, eu enlouqueci. Não sabia o que era Ministério Público, OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). A gente só age quando atinge o nosso quintal.”

Com a “ADPF das Favelas”, Irone diz sentir "cheiro de paz" após muito tempo. “Antes, era cheiro de sangue. Você estava na rua e não sabia se ia voltar para casa.”

Ela quer fazer mais. Conta de um encontro de mães em Goiânia no qual as mães de detentos mortos dentro do sistema prisional temiam denunciar. "Quando a gente sai do Rio, com essa força que a gente tem, elas enxergam esperança. A dor de uma é a dor de todas.”


Reprodução de reportagem de Thaiza Pauluze, Julia Barbon e Ítalo Nogueira, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Pequena amostra de frases sobre Pelé, 80

 Pesquise no Google: frases sobre Pelé. O que segue é só uma pequena amostra.

“Se Pelé não tivesse nascido gente, teria nascido bola”(Armando Nogueira, jornalista).

Pelé é um dos poucos craques que contrariaram minha tese. Em vez de 15 minutos de fama, terá 15 séculos” (Andy Warhol, artista americano criador da Pop Art).

“Na cabeça de muito jogador não passa nada no momento de fazer uma jogada. Na cabeça de Pelé passa um longa metragem” (Nilton Santos, a Enciclopédia do Futebol).

“Pelé não é um rei por hereditariedade. Seu reinado não é de força nem de leis. Não foi eleito nem designado, mas reconhecido como monarca dessa democracia ideal e universal que constitui o futebol” (France Football).

“Qual a diferença entre mim e Pelé? É simples. Eu fui craque e ele, gênio” (Leônidas da Silva, um dos primeiros a ser comparado a Pelé).

“No momento que a bola chega aos pés de Pelé, o futebol se transforma em poesia” (Pier Paolo Pasolini, cineasta italiano).

“Posso ser um novo Di Stéfano, mas não posso ser um novo Pelé. Ele é o único que ultrapassa os limites da lógica” (Johan Cruyff, holandês genial).

“Após o quinto gol, eu queria era aplaudi-lo” (Sigge Parling, sueco que o marcou na final da Copa de 1958).

“Eu pensei: ‘Ele é feito de carne e osso, como eu.’ Eu me enganei” (Tarciso Burnigch, italiano que o marcou na final da Copa de 1970).

“Subimos juntos, fora do tempo, para cabecear uma bola. Eu era mais alto e tinha mais impulsão. Quando desci ao chão, olhei pra cima, perplexo. Pelé ainda estava lá, no alto, cabeceando a bola. Parecia que podia ficar no ar o tempo que quisesse” (Giacinto Fachetti, italiano que também o marcou na final Copa de 1970).

“O maior jogador de futebol do mundo foi Di Stefano. Eu me recuso a classificar Pelé como jogador. Ele está acima de tudo” (Ferenc Puskas , húngaro genial).

“Jogava com grande objetividade. Seu futebol não admitia excessos, enfeites nem faltas. Ele quase não fazia embaixadas, não driblava para os lados, mas sempre em direção ao gol. Quando tentavam derrubá-lo, não caía, devido à sua estupenda massa muscular e equilíbrio” (Tostão, companheiro na Copa de 70).

“Senti medo, um terrível medo quando vi aqueles olhos. Pareciam olhos de um animal selvagem, olhos que soltavam fogo” (Wolfgang Overath, craque alemão).

“Maradona só será um novo Pelé quando ele ganhar três Copas do Mundo e marcar mais de mil gols” (Cesar Luis Menotti, técnico campeão mundial pela Argentina em 1978).

“O difícil, o extraordinário não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé” (Carlos Drummond de Andrade, poeta brasileiro).

“Cheguei com a esperança de parar um grande jogador, mas fui embora convencido de que havia sido atropelado por alguém que não nasceu no mesmo planeta que nós” (Costa Pereira, goleiro do Benfica, depois do 5 a 2 na final do Mundial de clubes em 1962).

“Às vezes fico com a sensação de que o futebol foi inventado para esse jogador fantástico” (Sir Bobby Charlton, inglês genial).

“Comparar o Pelé com qualquer jogador é impossível. Pelé é Pelé. Ele está em um nível completamente diferente" (Roberto Rivellino, companheiro na Copa de 1970).

“Quando o Pelé chegou ao Santos, falaram que seria o melhor jogador do Brasil. Erraram, foi do mundo" (Pepe, companheiro no Santos).

“Como se soletra Pelé? G-O-D!" (The Sunday Times, jornal inglês).

Pelé não é eterno. Eterno é ser Pelé.


Compilação de frases feita por Juca Kfouri, na Folha de São Paulo

Pelé e a glória do mundo

 No aniversário de 80 anos de Pelé, amanhã, não é fácil explicar às novas gerações de fãs do esporte, cevadas pelo talento luminoso de Messi e Cristiano Ronaldo, o tamanho do sol que ele representou para o mundo.

Em parte, nada mais natural do que isso. Um provérbio latino ensina há séculos que a glória deste mundo é transitória. Mesmo assim, o caso de Pelé tem peculiaridades bem brasileiras.

É possível —mas convém estudar os autos com cuidado— que Beckenbauer tenha sido mais elegante, Garrincha mais driblador, Maradona mais habilidoso, Zidane mais calculista, Cruyff mais imprevisível, Zico melhor nas cobranças de falta.

Pode-se defender num debate —embora a polêmica seja garantida— que o Fenômeno foi mais forte nas trombadas, Roberto Carlos mais mortal no chute de longe, Messi mais limpo no acabamento das jogadas, CR7 mais letal de cabeça.

O que não está aberto à discussão é que nenhum jogador da história chegou perto de combinar tudo isso numa enciclopédia de recursos técnicos, físicos e anímicos como Pelé. Se não acredita em mim, pergunte ao Tostão.

E essa orgia de critérios esportivos —confirmada por todas as estatísticas— ainda é só um pedaço daquilo que transformou Pelé no maior mito da história do esporte mundial.

Fica faltando contar que sua carreira explodiu quando a TV ganhava o mundo, ao mesmo tempo que a luta pelos direitos civis dos negros americanos começava a mudar a paisagem social para sempre.

Mais que gênio esportivo, Pelé virou um personagem maior que a vida. Será que viriam os “15 séculos de fama” que lhe previu Andy Warhol, revisando sua boutade dos 15 minutos? A história não seria tão simples —nunca é.

Junto com o culto a Messi, sabor de sorvete do momento, ganha espaço neste século a ideia de que as proezas de Pelé se deram num tempo em que o futebol era “fácil”. Ainda que fosse verdade (não é), faltaria explicar por que era fácil só para ele.

Apesar de burra, a tese se fortalece quando combinada a certa antipatia provocada na opinião pública pelas limitações do Rei —ou de Edson, seu alter ego plebeu— como cidadão e personalidade pública.

Conservador por temperamento, Pelé atingiu seu ponto mais baixo na estima nacional quando resistiu a assumir a paternidade de uma filha, Sandra, que parecia um clone seu.

Se é inegável que ele foi uma inspiração poderosa para milhões de negros em todo o planeta, sua postura conciliadora em tais questões entra em conflito com a doutrina antirracista contemporânea.

Por outro lado, sendo um preto retinto de sucesso avassalador num país dominado pelas cepas mais covardes do racismo, passou a carreira desagradando secretamente a muita gente. Que ninguém tenha dúvida: há na relativa falta de carinho público que o cerca na velhice uma boa dosagem de vingança.

De resto, eleger ídolos e celebrá-los é uma forma que as nações encontram de se construírem —e no Brasil de hoje têm predominado os que não querem construir nada.

Obcecado pela autodestruição, o país vai despencando reto na tabela do campeonato das nações, sob qualquer critério de desenvolvimento que se use —econômico, social, humano, ambiental e, sim, esportivo também.

Em chamas, em cinzas, o Brasil quebrou o espelho. Um mito como Pelé, símbolo do potencial que temos (tínhamos?) para construir um país brilhante, altivo e vitorioso, não cabe muito bem aqui. Perdão, Rei. Feliz aniversário, e obrigado por tudo.


Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo