Um mês antes de o Supremo Tribunal Federal decidir limitar as operações policiais em favelas no Rio de Janeiro durante a pandemia do coronavírus, a bibliotecária Catarina da Silveira, 48, buscava informações sobre seu filho Rogério da Silveira Júnior, 21.
Naquele 6 de maio, o estudante que pertencia ao grupo de risco para a Covid-19 decidira romper o isolamento para ir a um churrasco na casa de um primo, na comunidade da Danon, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Estava na rua quando a polícia chegou.
Os agentes dizem que receberam denúncia sobre uma briga de facções por ali e, quando chegaram, foram atacados. Quando os disparos começaram, só Rogério não conseguiu correr, impedido pela artrite reumatóide, doença crônica que afeta as articulações. Levou um tiro na perna e outro no pulmão. Levado pela polícia ao hospital, chegou morto.
“Ele saiu de casa e não voltou. Achei meu filho como desconhecido no hospital porque tiraram os documentos dele, a habilitação e a carteirinha da faculdade. A polícia disse que achou um marginal caído ao solo com rádio e revólver. Bandido nenhum faz gastronomia. Ele sempre estudou, trabalhou, mas era negro”, conta Catarina. A família, de classe média, vive em Niterói, na região metropolitana do Rio.
Desde 5 de junho, uma liminar do Supremo Tribunal Federal determinou que a polícia só pode fazer operações nas favelas fluminenses em casos “absolutamente excepcionais” e com envio de justificativa ao Ministério Público estadual. O número de ações e mortes pela polícia despencou no estado desde então.
“Quero limpar o nome do meu filho e culpabilizar o Estado. Agora foi com ele, mas não é o primeiro e não vai ser o último. Quanto mais a gente se cala, pior é”, diz a bibliotecária. “Estou deixando de ser a Catarina para ser a mãe do Rogério, morto pela polícia.”
A mãe de Rogério ecoa com muitas outras vozes femininas no Rio. Todas tiveram filhos assassinados pelo Estado e buscam forças em uma espécie de terapia de mãe para mãe, na qual se consolam, dividem conselhos sobre trâmites jurídicos, organizam atos e cobram a cobertura dos casos pela imprensa.
Ao gritar contra os abusos, por vezes, conseguem forçar o andamento dos processos para que os agentes sejam sentenciados.
Em 2017, um grupo de mães levou para a frente do Tribunal de Justiça 1.500 cartas escritas por crianças com relatos de violência na Maré, conjunto de favelas da zona norte carioca. Conseguiram uma decisão que obriga a polícia a evitar incursões em horários de entrada e saída escolar, manter ambulâncias acompanhando as ações e viaturas com GPS e câmeras.
Já as Mães de Manguinhos são amicus curiae (“amigas da corte”) da ação no STF que restringiu operações, apelidada de “ADPF das Favelas”.
Mães também conseguiram que o Brasil fosse condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2017, por não prever protocolos para o uso da força e pela injustificada demora em investigar e punir os responsáveis por 26 assassinatos de jovens em duas chacinas na favela Nova Brasília, em 1994 e 1995.
Foi a primeira vez que o país foi condenado pela corte da OEA (Organização dos Estados Americanos) por violência policial. Na ocasião, o órgão determinou que o Brasil criasse metas e políticas de redução da letalidade e violência policial. Mas desde então os números só cresceram.
Essas mulheres ecoam outros movimentos políticos no mundo envolvendo a busca por respostas a mortes violentas, como as Mães da Praça de Maio (Argentina), as Mães dos Estudantes Desaparecidos de Ayotzinapa (México), as Black Mothers do movimento #BlackLivesMatter (EUA), as Mães das Vítimas do Estado Colombiano e as Mães da Faixa de Gaza (Palestina).
No Brasil, há uma rede nacional e grupos atuantes no Rio e em São Paulo que acolhem mulheres de estados onde não há coletivos organizados. Mas também há as Mães de Maio do Cerrado, de Goiás, as Mães do Ceará, do Xingu, a Associação das Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Espírito Santo e as Mães de Belo Horizonte, por exemplo.
Em 2016, foi feito o 1º Encontro Internacional das Mães de Vítimas da Violência do Estado, no marco dos dez anos dos Crimes de Maio de 2006 —quando São Paulo viu uma onda de chacinas que culminou na morte de 564 pessoas, a maioria jovens negros e pobres.
As mães cariocas também conseguiram uma lei que instituiu a Semana Estadual das Pessoas Vítimas de Violências, celebrada entre 12 e 19 de maio. A inspiração veio da lei paulista, que havia criado em 2014 a semana que homenageia as mães de vítimas do mês de maio.
Agora, elas cobram a nacionalização da lei e a aprovação de projetos de lei com um fundo de reparação econômica, psíquica e social aos familiares e outro que determina afastamento imediato de policiais que respondem a processos do tipo na Justiça.
Essa briga em nome das vítimas já produziu suas próprias vítimas. Edmea da Silva Euzébio, uma das Mães de Acari, bairro da zona norte do Rio, foi assassinada em 1993. Pioneira, ela investigava o desaparecimento do corpo do seu filho, morto três anos antes.
Outras mães desistem, por medo, descrença na Justiça ou falta de tempo ante a necessidade de trabalhar. Doenças associadas à tristeza pela perda do filho, como a depressão e o infarto, também deixam seu saldo de mortas.
“No início parecia que era só comigo”, diz Catarina. “Todas contam suas histórias. Falam da saudade dos filhos. Me ajudou muito. Mas quinta-feira segue sendo o pior dia”, diz ela sobre as sessões de terapia para tratar o quadro depressivo. “Não saio mais de casa, só fico chorando o dia inteiro. Além de perder, ainda tenho que lutar pela memória, provar que ele não era bandido."
Laura Ramos de Azevedo, 36, perdeu Lucas, 18, assassinado na véspera do ano novo de 2018. Ele ia de moto para a casa da namorada quando levou um tiro de raspão nas costas da polícia, segundo testemunhas. Foi levado pelos PMs ao hospital, onde chegou morto com um tiro no rosto, que o deixou irreconhecível. A mãe desconfia que o disparo tenha sido feito no caminho.
“A gente passa a ser mãe do meliante. Sujam os nossos filhos e sujam a gente. Não sou mais a Laura. Se eu tô de pé, é porque tenho apoio das mães. O mesmo tiro que matou o Lucas, me matou”, conta ela, que está com câncer de pulmão e segue cobrando respostas. “O que é ter um câncer perto da dor de perder um filho?”
Janaina Soares teve um infarto e seis paradas cardíacas em 2018 depois de ver a polícia matar outro adolescente perto da sua casa. A cena remeteu à morte se seu filho, Christian, 13, numa operação da Divisão de Homicídios e da PM em Manguinhos em 2015, algo que desde então a mantinha em depressão.
A morte de Janaina foi mais uma das tantas perdas das Mães de Manguinhos. O grupo surgiu em 2014, após o filho da pedagoga Ana Paula Oliveira, 43, ser assassinado enquanto levava um pavê para a avó. Johnatha de Oliveira tinha 19 anos. Revoltada, ela se uniu a Fátima Pinho, 45, que viu o menino ser baleado na porta de casa e se dispôs a testemunhar.
Fátima havia perdido Paulo Roberto, 18, sete meses antes. Ele saíra 15 dias do sistema prisional, após cumpriu pena por furto, e começou a ser perseguido por PMs por questionar abordagens violentas na favela. Foi espancado até a morte em um beco.
“Nesse encontro entre eu e a Fátima, ela segurou a minha mão e disse: ‘A gente não pode deixar isso para lá. Precisamos lutar pelos nossos filhos’, conta Ana Paula, que já viajou para Holanda, Reino Unido, Suíça, Espanha, EUA e Jamaica para divulgar relatórios sobre mortes violentas e participar de intercâmbio entre familiares de vítimas.
“As pessoas ficam espantadas quando descobrem a violência que nos atinge. A gente vê que é uma luta global e os familiares de lá também são negros."
Nos protestos daqui ela também se reconhece: “Olho para as outras mães e começo a me enxergar como mulher preta, moradora de favela. Quando me pergunto por que fizeram isso com meu filho, minha família... Aí está a resposta”.
Ana Paula, que era tímida e confusa ao falar, hoje não titubeia. Diz que Johnatha a transformou com sua chegada e com sua partida. "Não quero saber como vou falar, quero botar para fora essa dor e quero que as pessoas me ouçam.”
Depois que elas criaram o Mães de Manguinhos e passaram a denunciar os abusos sistematicamente à Defensoria Pública e ao Gaesp (grupo do Ministério Público que investiga casos de mortes por agentes), a violência nas operações diminuiu.
“A gente questionava. Eles botavam fuzil na minha porta dizendo que iam dar um tiro na minha cabeça. Eu lembrava do meu filho. Não tem como uma mãe ver os meninos sendo abordados dessa forma e ficar quieta”, diz Fátima.
“Meu filho deu dois suspiros no meu braço e não voltou mais. Logo quando ele tava se emendando, tomando juízo", diz. Os policiais, afirma, foram condenados a 3 anos, cumpridos em liberdade. "É um alvará para eles matarem mais”, conta a mãe de Paulo Roberto.
A costureira Irone Santiago, 55, é também a mãe de Vitor, 34, que ficou paraplégico e perdeu uma perna quando ia assistir a um jogo do Flamengo e seu carro tomou dez tiros durante uma operação do Exército, em 2015. Hoje ela é ativista na Maré, acumula dois aneurismas, mas diz seguir para que seu filho tenha voz.
“Se existe esse movimento, é porque no passado houve outras mulheres valentes”, diz. “Depois que meu filho levou os tiros, eu enlouqueci. Não sabia o que era Ministério Público, OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). A gente só age quando atinge o nosso quintal.”
Com a “ADPF das Favelas”, Irone diz sentir "cheiro de paz" após muito tempo. “Antes, era cheiro de sangue. Você estava na rua e não sabia se ia voltar para casa.”
Ela quer fazer mais. Conta de um encontro de mães em Goiânia no qual as mães de detentos mortos dentro do sistema prisional temiam denunciar. "Quando a gente sai do Rio, com essa força que a gente tem, elas enxergam esperança. A dor de uma é a dor de todas.”
Reprodução de reportagem de Thaiza Pauluze, Julia Barbon e Ítalo Nogueira, na Folha de São Paulo.