Foi numa tarde dos anos 80. Pelé entrou no avião da ponte aérea e, num segundo, as portas se fecharam, como se só estivessem esperando por ele. Sentado no corredor da segunda fileira, não tive como não vê-lo —mesmo porque Pelé usava paletó laranja, camisa violeta e gravata rosa-choque, seu guarda-roupa na época. E, por acaso, sua fileira era a minha. Como um jato, Pelé passou por mim e pelo homem na poltrona do meio, sentou-se à janela e, ato contínuo, levou a mão à testa cobrindo os olhos, como se tivesse acabado de cair no sono. E assim ficou do Rio a São Paulo, embora eu não o ouvisse ressonar.
Era óbvio que fingia dormir, e nada mais compreensível. Era a sua única maneira de passar os 45 minutos do voo sem ter alguém ao seu lado dizendo-lhe que, apesar de ele ter feito uma média de quatro gols por semana no Corinthians, o sujeito o admirava. Ou se era verdade que tinha perdido gols de propósito para que o 1.000º fosse no Maracanã. Fazer de conta que cochilava era essencial para evitar o contato olho a olho —aquele que, uma vez estabelecido, tacitamente autoriza o fã a se dirigir ao ídolo.
Pelé não imaginava que, a duas poltronas da sua, estava alguém que sabia mais de sua vida do que ele poderia pensar. No caso, eu. E só porque tínhamos alguém em comum: o jornalista Hans Henningsen, o famoso Marinheiro Sueco, consagrado por Nelson Rodrigues.
Hans exercia grande ascendência pessoal sobre Pelé, que lhe devia contatos, conselhos e orientações. E era mais que um amigo para mim. Era um irmão mais velho, e não havia segredos entre nós. Nem mesmo os segredos de Pelé.
Evidente que sempre guardei comigo o Pelé desconhecido que, às vezes, ele me descrevia: o homem que se debatia entre o herói, o potentado, o cidadão do mundo e o Edson ingênuo, inseguro, capaz de erros terríveis, dolorosamente humano —que no fundo é.
Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo.
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