Numa obra que se tornou um clássico da literatura universal, Joseph Conrad descreve um personagem que sofre com as virtudes éticas do protagonista do livro, o "Lord Jim", por ser ele capaz de, frente a um erro, assumir a culpa, quando outros fugiram de sua responsabilidade, e de buscar um caminho para purgar o mal que tinha feito, colocando-se, com grande risco pessoal, a serviço dos outros de forma generosa e empática.
Jim era longe de perfeito, mas havia, em sua obstinada atitude, um despojamento e uma ingenuidade que chegam a comover e, por isso mesmo, a despertar ódio e desejo de vingança em seu adversário, o pirata chamado no livro de "gentleman Brown", que se sente ameaçado por suas qualidades. E Brown trabalhará para destruir Jim.
Ao ler a obra, em meio à pandemia, não pude deixar de pensar no espírito do tempo em que vivemos. O ódio vigente parece resultar não só do sofrimento vivido com a crise, mas de certa repugnância sentida frente ao fortalecimento de uma atitude de empatia, da inclusão do outro num espaço percebido antes como um clube de privilégios e da comunicação não agressiva com quem pensa diferente.
Ou seja, o processo civilizatório que demanda um esforço em direção a uma sociedade em que não só nossos direitos exclusivos sejam respeitados, mas os dos outros também, tira-nos da zona de conforto e nos traz a sensação de perdas. É como se quiséssemos preservar o direito de ofender, de ser "politicamente incorretos", de nos blindarmos da acusação por crimes que atribuímos aos outros.
Mas há algum antídoto matador contra o ódio? Aparentemente não. Essa infelicidade com o sucesso moral dos outros parece não ter cura, pois a existência de pessoas com tais virtudes denuncia as limitações de quem não é capaz de se sacrificar pelo coletivo ou de corrigir eventuais erros cometidos. No fundo é como se, na competição da vida, podemos nos sair melhor se os outros nos forem inferiores inclusive na esfera ética.
Nesse caso, muitos preferem esvaziar palavras de seu significado. "Liberdade de expressão" e "corrupção" têm sido fartamente utilizados para descrever ações do grupo percebido como rival. Masha Geschen, em seu recente livro "Surviving Autocracy", chega a afirmar que o vocabulário usualmente usado em democracias liberais perde poder explicativo ao ser aplicado aos tempos em que vivemos.
Mas há certamente caminhos a serem trilhados para enfrentar esse "zeitgeist". E eles passam por uma educação de qualidade para todos, que preserve conquistas civilizatórias e promova, em crianças e jovens, valores para uma convivência empática e não violenta.
Texto de Claudia Costin, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário