domingo, 25 de outubro de 2020

Quarentena, gim-tônica e Serasa

 Escrevo esta coluna bêbado, 10 kg acima do meu peso, num teclado besuntado de maionese e com o nome no Serasa: sou um quarentão, mas pode me chamar de quarentener.

Em março eu estava na melhor forma da minha vida. Vinha treinando havia meses para uma meia maratona. Bebia moderadamente. Comia quinoa. Brócolis. Kiwi. Fazia ginástica funcional. Meu assoalho pélvico tava tinindo como um porcelanato com Pinho Sol. Cheguei perto, juro,
de ter uma barriga de tanquinho. Então veio o corona.

No primeiro mês, tentei manter a normalidade. Para mim e para as crianças. Aquela pose austera e meio boba, tipo: não é porque estou sozinho que posso comer de boca aberta.

Tudo mudou em abril, quando li uma matéria no New York Times. No artigo, uma nutricionista sugeria que a quarentena não era o momento de educar as crianças para uma alimentação saudável. Elas já estavam sem escola, sem avós, sem a pracinha, sem amigos; talvez, nos dois meses que deveria durar a quarentena, fosse mais importante reconfortar suas pequenas almas com batata frita e ovo de páscoa recheado de chocotone do que proporcionar aos seus diminutos corpos a quantidade ideal de fibras,
betacaroteno e flavonoides.

Fechei o iPad, abri um Diamante Negro de 500 gramas pros meus filhos e —numa regra de três autoindulgente— escancarei um caminho sem volta pra mim.

Ué, se as crianças merecem açúcar e afeto, pensei, eu também mereço os meus correlatos. Começava aí um mergulho perigoso no alcoolismo, no hamburguismo, no pizzismo, no sedentarismo e no amazonismo —o vício de entrar na Amazon quase todo dia e comprar
coisas absolutamente inúteis.

Comprei: um estilingue que seria aprovado pelo COI, caso estilingue fosse esporte olímpico, um microscópio, uma barraca de camping, uma luminária à energia solar, um pandeiro, formas de gelo que parecem ter sido desenvolvidas pela Nasa, um saca-rolhas elétrico, um fone de ouvidos sem fio, outro fone de ouvidos sem fio, mais um fone de ouvidos sem fio, um moedor de carne manual, um moedor de carne elétrico, umas rodelas de metal pra moldar hambúrguer, umas minitampas de panela pra derreter o queijo do hambúrguer e uma quantidade de livros que três gerações dos meus descendentes não darão conta de ler.

Pros meus filhos: bastões luminescentes de camping, 28 bonecos dos Power Rangers, 189 mil jogos de iPad, caixa de lápis de cor, caixa de massinha, caixa de argila, 25 bonecas LOL (aí que entrei pro Serasa; uma Ferrari é mais barata do que as bonecas LOL).

Foi emocionante e divertido no começo. Eu trabalhava de casa todo dia, das dez às cinco e cinquenta e nove. Assim que dava seis da tarde, porém, eu sextava furiosamente.

Por dois meses, como disse a nutricionista do NYT, tudo bem. Mas a pandemia, ao contrário do que ela previa, não acabou. E essa existência mezzo saloon de velho oeste, mezzo Passaporte da Alegria no Playcenter, oito meses depois, tá cobrando seu preço. Pro meu cartão de crédito. Pras minhas coronárias. Pra educação dos meus filhos.

Num mesmo dia o Dani perguntou: “Papai, o que a gente vai comprar hoje?”. E a Olivia: “Papai, se eu te falar uma coisa, você não vai ficar bravo?”. “Claro que não, filhota, o que é?.” “É que a sua barriga tá ficando engraçada.”

Decidi que tinha chegado ao fundo do poço. Precisava tomar uma atitude. Botei os dois pra dormir, fiz uma gim-tônica, entrei na Amazon e comprei um telescópio.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

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