Leticia Kaplan Fernandes, 24, era adolescente quando a mãe, a professora de inglês Ana Kaplan, foi buscá-la na CIP (Congregação Israelita Paulista) e ela entrou no carro e repetiu palavra por palavra o discurso do rabino.
As cerimônias judaicas tinham muita importância para ela porque eram uma conexão com a família materna, que vivia no sul, enquanto Leticia morava em São Paulo com Ana, com o pai, o jornalista Bob Fernandes, e a irmã, Luana.
Tudo se desenvolvia em harmonia com a cultura, a musicalidade, as festas e os rituais da Bahia, de tantas e tantas férias passadas com a família do pai em Salvador. "Uma judia de Iemanjá", relembra a madrinha, Marcia Cunha.
Leticia se graduou em 2019 na Faculdade de Direito da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Ela e mais quatro amigas, que tinham se formado em anos diferentes, celebrariam todas na mesma festa, como se tivessem finalizado o curso juntas. Mas as coisas não saíram como planejado: bem na época da formatura, a Lê, como era chamada por todos, teria que passar por uma cirurgia.
Dois anos antes, ela recebera o diagnóstico de um câncer no intestino. Elas então arrumaram outra festa, uma formatura da PUC. Fingiram que era a formatura delas e mandaram até fazer copos comemorativos.
Apesar dos percalços, eram tempos felizes. Linda, Leticia chamava a atenção pelo total despojamento: ia na faculdade com calças largas de estampas de elefantes que comprou na Tailândia. Por baixo do blusão, muitas vezes vestia um pijama.
Em 2016, um ano depois de passar no vestibular e antes do diagnóstico da doença, Lê decidiu tirar um período sabático. Mesmo podendo contar com a ajuda dos pais, preferiu trabalhar no restaurante Charlô de garçonete, juntar o próprio dinheiro e, mochila nas costas, partir para seis meses de um giro por Europa e Ásia.
Em um dos dias da viagem, em Paris, parou tudo porque uma das amigas, no Brasil, disse em um grupo de mensagens que estava chateada. Foi para um café e passou o dia conversando com ela.
Nisso, a Lê puxou a mãe, Ana: se interessava de verdade por cada pessoa e cada detalhe de cada história que contavam para ela. Na hora de dar a sua opinião, era como o pai, Bob: sábia e precisa. "Tão simples em tudo o que dizia e, por isso mesmo, tão sofisticada", relembra a bailarina Paula Boccardo, que estudou com ela na FGV.
Em 2017, de volta ao Brasil, outra conquista: foi selecionada para estagiar no escritório Dias e Carvalho Filho Advogados. Logo foi contratada —coisa rara, pela escassez de vagas. "Houve um desejo muito forte de mantê-la. Leticia era bem formada e brilhante, com uma afinidade enorme com nossos valores", diz o advogado Theo Dias.
Aos 50 anos, Elaine Angel, sócia do escritório, tinha ficado viúva do juiz Paulo Scartezzini. "Na mesma época, a Lê teve o diagnóstico da doença. Viramos amigas, confidentes, como se tivéssemos a mesma idade. Foi uma coisa mágica", relembra a defensora, acentuando a característica de Leticia, de se integrar às mais variadas tribos.
Entre várias coisas em comum, elas tinham "a raiva de as pessoas nos olharem com piedade". Porque Leticia seguia "com a mesma garra". De manhã, ia para a quimioterapia. À tarde, para o escritório. "Ela nunca fraquejou, nunca desistiu", diz Elaine. Viveu também um grande amor, com o namorado Guilherme Góes.
"Ela dizia que 2021 seria o nosso ano, sem mais tristezas. Estávamos só esperando a vacina [contra o coronavírus] chegar", lembra a advogada. Leticia morreu no sábado (10), em São Paulo. Deixa os pais, Bob e Ana, a irmã, Luana, o namorado, Guilherme, os tios Gilberto e Ilana Kaplan, os tios Fernandes da Bahia Elizabeth, Frederico, Christina, Edson e Ricardo, o avô materno, Idel, e centenas de amigos. O escritório Dias e Carvalho Filho Advogados manterá o nome dela em seu site, como uma eterna homenagem.
Reprodução de obituário publicado na Folha de São Paulo.
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