Como meu amigo e colega Gregório Duvivier, eu também entrei na quarentena achando que iria ler "Em Busca do Tempo Perdido" enquanto escreveria um romance de 800 páginas, um roteiro de longa e uma peça de teatro.
Três semanas mais tarde, porém, devo admitir que a minha inspiração tem desaguado principalmente no Twitter e em mensagens para grupos de WhatsApp. Nem a leitura tem sido muito produtiva: em vez de me empanturrar com as madeleines de Proust, futuco a internet atrás de toda e qualquer migalha sobre a pandemia.
Tenho conversado com amigos escritores e a pane criativa parece ser geral. Não estar conseguindo criar, no entanto, é um problema secundário se comparado à encrenca de quem tem obras inéditas ou em produção.
A pergunta que nos fazemos é: será que nossas obras terão algum sentido no mundo pós-Covid? O que será o mundo pós-Covid? Como seremos nós, os sobreviventes da Covid? Quereremos livros, filmes, séries e peças sobre a doença, o isolamento, ou comédias leves que nos façam esquecer o passado recente?
Não sabemos. Não saber, aliás, é uma das angústias desta peste. Não sabemos quantas pessoas morrerão. Se teremos parentes e amigos que morrerão. Se contrairemos a doença. (Sete bilhões de pessoas imaginam, diariamente, a própria morte).
Qual será a extensão da quebradeira econômica? Teremos emprego daqui a três meses? O que este sociopata que ocupa a Presidência da República ainda aprontará para piorar a vida dos brasileiros? O coronavírus adiantará o fim do estafermo ou lhe dará meios para executar o tão sonhado golpe de estado?
A única certeza é que a tragédia atual deixará marcas profundas em todos nós. E aí reside mais um problema para os escritores com obras inéditas ou em produção. É preciso inserir estas marcas nos personagens. Lançar um livro em dezembro de 2020 em que nenhum personagem mencione o coronavírus é como lançar um livro na Paris ocupada em 1944 ignorando o nazismo.
Mas como inserir estas marcas se não sabemos quais serão? O medo da morte, somado ao isolamento social, vai produzir um futuro próximo sob o signo da melancolia ou vai todo mundo fazer suruba na rave cheirando lança perfume? Augusto dos Anjos ou Village People?
Não temos a mais vaga ideia e prostrados ficamos, sem saber se escrevemos "Vês! Ninguém assistiu ao formidável/ Enterro de tua última quimera/ Somente a ingratidão ""esta pantera""/ Foi tua companheira inseparável" ou "It's fun to stay at the Y.M.C.A".
O senso comum costuma creditar obras excepcionais a experiências excepcionais. Às vezes é assim, como no "Diário de Anne Frank" ou "Matadouro-Cinco". A arte que mais me interessa, porém, é a que fala do homem comum. Do tempo comum. É "A Morte de Ivan Ilitch": um homem, qualquer homem, diante do próprio fim. Os poemas do Drummond: um homem, qualquer homem, sozinho numa noite do Rio de Janeiro. "Memórias Póstumas de Brás Cubas": um homem, o mais medíocre dos homens, dissecado por um escritor genial. As crônicas do Rubem Braga: uma tarde na praia. Uma árvore da infância. A vista da janela. "A Morte do Caixeiro Viajante". "Casa de Bonecas". "Annie Hall".
Hoje, contudo, todas estas obras estão eclipsadas pela realidade. O jornalismo tomou o lugar da ficção. É com as notícias que choramos, sentimos medo, esperança, raiva, empatia. Não vejo a hora desta loucura acabar, de voltarmos para nossas vidas e termos que buscar na arte alguma beleza e sentido para nossas saudosas banalidades.
Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo.
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