[Contém ironia] Em tempos de pandemia, ser milionário é uma penúria. Jornais como esta Folha gastam incontáveis caracteres tratando dos problemas das classes populares. Favelas para cá, falta de esgoto para lá. E nada, nadinha, nem uma palavrinha sequer direcionada à nossa classe, a dos milionários. “Ninguém pode se sentir rico no Brasil enquanto houver tanta pobreza por aí”, preconizou Luciano Huck nas páginas deste jornal no dia 1º de abril.
1º de abril. Às vezes, a piada dispensa a ironia, mas não o lugar de fala.
Discriminação contra milionários é estrutural, e estrutural sendo, é histórica. Já em 1901, na Inglaterra, Bernard Shaw reconhecera o problema no livreto “Socialismo para Milionários”. Nele, defende que “a classe milionária, pequena, mas crescente, na qual qualquer um de nós pode ser arremessado amanhã pelos fortuitos do comércio, é talvez a mais negligenciada. O infeliz milionário tem a responsabilidade de uma riqueza prodigiosa sem a possibilidade de se divertir mais do que qualquer homem rico comum”. Uma miséria só.
Num país onde qualquer um com mais de R$ 5.000 por mês já esteja nos 10% mais ricos, a classe milionária sofre de invisibilidade crônica. Somos a mão invisível que um sistema cuidadosamente construído de perniciosas relações público-privadas busca ocultar. Com razão, não cairia bem lembrar que subsídios embutidos em operações de crédito e financeiras entre 2003 e 2016 foram quase três vezes maiores do que os recursos destinados a programas sociais, e apenas metade daqueles para o setor produtivo.
Rodrigo Maia disse que nós poderíamos fazer mais pelo país. O que mais se espera de nós para o Brasil não parar? Já fizemos grandes caridades em todo o país. Já reduzimos em 25% os salários dos empregados em nossos clubes. Já demitidos 600 funcionários cumprindo a profecia que nós mesmos fizemos. Nos respeitem: não somos empresas pequenas e médias que podem falir sem ajuda governamental. Nós, milionários, fazemos injustiça com as nossas próprias mãos.
Até pela direita somos hostilizados. Até o jornal Financial Times pede em editorial reformas radicais. Até Nobel de Economia defende no Lancet Public Health que desigualdade pode piorar a transmissão do coronavírus. Até Merkel congelou contratos de aluguel, evitando milhares de ações de despejo. Onde iremos parar?
Colunistas que defendiam, até ontem, que desigualdade não era um problema no país traíram nossa classe —no caso, a classe de alguns deles também. Descobriram que dinheiro pode vir de emissão de dívida pública. Descobriram que sem renda, não tem consumo, e sem consumo, não tem crescimento. Keynes lhes manda um beijo. Descobriram agora que, desde 1996, lucros e dividendos são isentos de imposto de renda. Gerariam R$ 22 bilhões a R$ 39 bilhões, afirmou o Ipea em 2019.
Descobriram a uberização, o SUS, a renda básica: anos de aprendizado em Chicago e outros tantos sob a ditadura chilena para desaprender tudo em uma semana de quarentena. Pensa que não sabíamos de tudo isso? Claro que sabíamos, mas não nos importávamos.
Nós, milionários, sabemos que “a desigualdade é diferente vista do topo”, como escreveu Pedro Souza. Sabemos disso, porque estamos no topo. Se estiver correta a tese de Pedro Souza em “Uma História de Desigualdade: A Concentração de Renda entre Os Ricos no Brasil entre 1926-2013” de que apenas crises e rupturas nos afetam, devemos nos preocupar com o que o futuro pós-Covid 19 nos reserva.
Em vão, tentamos de tudo. Chamamos renda básica emergencial de coronavoucher para torná-lo tão perecível quanto a nossa boa vontade. Não colou. Persuadimos a classe média de que o imposto sobre grandes fortunas poderia lhe atingir, embora saibamos que ninguém na classe média tem um patrimônio superior a R$ 20 milhões. Nós é que temos. Defendemos estado mínimo, mas timidamente apoiamos medidas econômicas emergenciais que protejam empregos, afinal sem empregos não tem atividade econômica. Defendemos que é a redução dos salários do funcionalismo público que nos salvará, trivializando um debate sério.
Não conte para ninguém. Ironia é forma de lidar com a tragédia. Rir diante da crueldade, no entanto, não a torna menos cruel. Hoje, ou em 1901.
Texto de Tiago Amparo, na Folha de São Paulo.
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