Shakespeare escreveu “Rei Lear” na quarentena, lembraram. E eu, que nem li “Rei Lear”, fiz a nota mental —nesta quarentena preciso, pelo menos, ler “Rei Lear”. E estudar trombone, e aprender russo, e ler partitura, e ler “Rei Lear”em russo, e fazer tortas. Vou fazer desse limão um cheesecake vegano. Aguardem.
Não sei vocês, mas lá se vão 20 dias de confinamento e tudo o que eu fiz até agora foi contar a mesma história para a minha filha e participar de videochamadas e, entre uma coisa e outra, eu vi memes. Acho que na época de Shakespeare não tinham videochamadas, nem memes, nem filhos.
Às vezes tiro cinco minutos para ler as notícias e então um turbilhão atravessa minha cabeça e começo a ver o Brasil dentro de um caixão carregado por quatro homens que dançam ao som de música eletrônica, e 200 milhões de pessoas estão dentro do caixão, e a música não sai da minha cabeça.
Essa coisa de presenciar momentos históricos é muito cansativa —diz um meme, ou talvez tenha sido Shakespeare. Já não sei mais o que é arte ou o que é meme. Não sou eu nem sou o outro —diz o meme— sou qualquer coisa de intermédio. Acho que isso foi Mário de Sá Carneiro, ou algum outro Mário, de sacanagem.
À noite ponho a cabeça no travesseiro e conto as poucas horas que faltam para a minha filha acordar —e me pergunto se nessas poucas horas eu não deveria tentar escrever o grande romance da minha geração, e daí não consigo dormir, e menos ainda escrever, porque fica difícil escrever um romance quando você não consegue nem ler um romance, e fica difícil ler um romance quando você não consegue terminar um conto, e fica difícil ler um conto quando o mundo que você conhece acabou, e ninguém sabe o que pode vir depois disso.
Decidi que não vou produzir nada. O mundo não precisa de mais livros —certamente não de um livro meu. Minha filha vai precisar, daqui a pouco, de um pai acordado.
Caro leitor, meu semelhante, meu irmão, estamos na mesma. Queria combinar com você uma coisa: vamos sair dessa pandemia de mãos abanando?
Se serve de consolo, Shakespeare deve ter sido um pai merda.
Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo.
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