Daquelas notícias que, em meio a tanta coisa feia, tanta coisa ruim, dão uma animada no leitor. Para ajudar os cidadãos em situação de vulnerabilidade durante o afastamento social imposto pela pandemia, a prefeitura de Montevidéu está distribuindo cestas básicas com livros dentro. Sim. Livros. Aqueles objetos que, segundo alguns, “têm muita coisa escrita”.
Na contramão desse conceito, digamos, tão pouco ilustrado, Montevidéu vem misturando batatas com Albert Camus. Lentilhas com Julio Verne. Leite com George Orwell. Arroz com Horacio Quiroga. E, para não deixar "los niños" só olhando, cabelinho de anjo com J.K. Rowling.
Sobre a iniciativa, o secretário-geral da prefeitura disse à Folha que “não se trata apenas de minimizar a crise em termos econômicos, mas de fortalecer o espírito. A literatura e a arte colaboram com isso”. Caiu uma lágrima, não sei se de emoção por eles ou de tristeza por nós.
Juan Canessa, o secretário-geral, estudou antropologia. É de humanas, portanto, baderneiro. Assim como o prefeito de Montevidéu, faz parte da Frente Ampla, a coalizão de esquerda que elegeu Tabaré Vázquez e José Mujica.
Sorte a deles que o Uruguai não é o Brasil de hoje. Se fosse, é certo que ouviriam um “nuestra bandera nunca será roja” quando saíssem para jantar com a patroa e os pirralhos. Não faltaria quem visse na distribuição de livros um perigoso ato ideológico. E, na sequência, começariam os rumores sobre “el biberón de pito” (desculpas se a mamadeira de piroca não estiver corretamente traduzida).
O Brasil de hoje anda tão despirocado que isolamento social virou ideologia. Ficar em casa serve para achatar a curva ou para quebrar o Brasil? Prefeitos e governadores são a favor de diminuir o número de contaminados ou estão contra o Brasil? E a cloroquina, é quem tem competência que dirá se ela salva vidas ou um desqualificado que a receitará para salvar o Brasil?
Enquanto isso, os “hermanos” seguem distribuindo cestas básicas e livros. Farinha com Juan Carlos Onetti. Óleo com Hermann Hesse. Café com Mario Benedetti. Cenoura com García Marquez. Nas palavras do secretário-geral de Montevidéu, “a cesta básica, mais do que algo para superar a emergência, deve ser um carinho no coração das pessoas”.
Só não deixa aquele pessoal da frente da Fiesp saber, senão periga eles mudarem o bordão. Sai “Vai pra Cuba!”, entra “Vai pro Uruguai!”.
Texto de Cláudia Tajes, na Folha de São Paulo.
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