A pedido da pediatra, escolhemos uma rua bem vazia e levamos nossa filha para dar uma volta. O dia estava lindo, mas eu só conseguia pensar na minha cachorra se esfregando em tudo e levando o vírus maligno pra casa.
Eu não parava de imaginar que aquele jovem atleta a cinco metros poderia, a qualquer momento, soltar um espirro veloz e assassino que chegaria até nós. O dia bonito só piorava a sensação terrível de que não existem mais dias bonitos.
Minha filha estava assustada com o vento chacoalhando as árvores e com os “cachorros bravos” em alguns quintais, e eu queria dizer a ela a frase mais reconfortante que eu lembro da minha infância: não precisa ter medo! Sempre que meus pais ou meus avós me falavam isso, eu via dias ensolarados, mesmo com o céu armando o maior temporal.
Porém, não consegui abrir a boca. Há anos eu não tinha uma crise de pânico e pude sentir ela chegar, acelerando meus pés ao mesmo tempo que amolecia os joelhos. Gelando minhas mãos ao mesmo
tempo que fervia o peito. Fazendo os dentes de cima empurrarem os de baixo até meu rosto parecer uma cabeça de boneca enterrada por um soco.
tempo que fervia o peito. Fazendo os dentes de cima empurrarem os de baixo até meu rosto parecer uma cabeça de boneca enterrada por um soco.
Fui ensinada, quando criança, que Deus existe. Meus amigos criados por pais intelectuais sempre riram de mim. Mas eu, lá no fundo, é que estava rindo deles. Acreditei em Deus todos os dias da minha vida, mas naquele segundo, vendo minha cidade pulsante transformada em locação de filme de zumbis, tendo que lançar o dinheiro para o menino que pedia ajuda pra comer (como chegar muito perto das pessoas sem ter medo de morrer?), eu senti, pela primeira vez, que estamos sozinhos neste planeta.
Que meu pai, aos quase 80 anos, não pode fazer nada por mim. Que meu país, liderado por um demente psicopata, eleito pelo fascismo cotidiano, não pode fazer nada por mim. Que a ciência (que pavor, meu Deus!), segue respondendo diariamente que ainda não sabe o que fazer.
Eu lembro dos milhões de vezes que minha mãe me disse para enfrentar a vida. Sair do meu quarto, pegar o avião, não desmarcar as festas e as reuniões. Lutar com todas as minhas forças contra as minhas crises. “E daí se tiver muita gente?” E eu lutei e fiz tanta terapia e estudei tanta psicanálise que estava indo muito bem. E agora? Agora eu tenho medo até do boleto do condomínio que chega por debaixo da porta.
Eu passo tanto álcool que invalido o código de barras. Estar isolada no meu apartamento é como ter voltado mil casas no joguinho. Meu pânico deixou de ser fantasia ególatra e virou consciência social.
Minha filha continua assustada e me olha. O pai a pega no colo e diz: “Não precisa ter medo, é só o vento. Acho que o cachorro está latindo porque quer brincar”. Ela se acalma e acha que os galhos estão dançando. Dá tchau para os cães. Ou será que sou eu que acho? Sua infância está a salvo por enquanto. A minha também. Lembro que não tenho Deus, mas tenho o outro. Daqui a pouco é ele quem vai deitar meio angustiado no sofá e precisar de mim.
Na falta de Deus ou da crença em heróis, resta a gente. Penso nos amigos de quem, por gostar tanto, fico apertando a carne do braço e nos meus pais almoçando massa recheada de queijo comigo. Minha cabeça retorna às proporções humanas e deixo de ser um brinquedo feito de plástico oco pronto para ser esquecido numa caixa.
Faço tudo “o que dá pra fazer”, e isso me parece uma nova religião. Agora eu rezo todos os dias para essa divindade chamada “o que dá pra fazer”. Tenho vontade de erguer um altar para o santo “o que dá pra fazer”. A soma do meu “o que dá pra fazer” com “o que dá pra fazer” de todos que querem fazer alguma coisa que preste é o que chamo agora de fé.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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