Em algum lugar do Brasil, uma manifestação.
Toca o hino nacional, uma grande faixa pede “intervenção militar já”. Um homem, de óculos escuros e com uma bandeira drapeada nas costas, levanta o punho e fala: “Brasil, chega de te sangrarem;
chega, não tem diálogo com STF, não tem mais diálogo com o Congresso, chega, nós queremos Bolsonaro no poder com o apoio das Forças Armadas, chega, a paciência do brasileiro acabou; Bolsonaro é nosso capitão, e as Forças Armadas apoiando Bolsonaro; Brasil, reage, lutem por essa bandeira aqui, vibrem, defendam a pátria, defendam as crianças, olha para teus filhos, teus netos, teus sobrinhos, vamos, Brasil, reage, Brasil, eu te amo”. Comovido, ele beija a bandeira com força.
chega, não tem diálogo com STF, não tem mais diálogo com o Congresso, chega, nós queremos Bolsonaro no poder com o apoio das Forças Armadas, chega, a paciência do brasileiro acabou; Bolsonaro é nosso capitão, e as Forças Armadas apoiando Bolsonaro; Brasil, reage, lutem por essa bandeira aqui, vibrem, defendam a pátria, defendam as crianças, olha para teus filhos, teus netos, teus sobrinhos, vamos, Brasil, reage, Brasil, eu te amo”. Comovido, ele beija a bandeira com força.
Esse vídeo chegou domingo passado ao meu celular. Fiquei perplexo, mas não atônito, porque, no fundo, ele é banal: o patriotismo é quase sempre exaltado.
A comoção exagerada é necessária para esconder dois fatos: 1) a pátria é uma entidade abstrata, pela qual, em tese, não haveria como sentir imensos amores, tanto mais que, com frequência, a exaltação patriótica surge logo no momento em que o suposto “patriota” quer silenciar e massacrar todos os compatriotas que pensem diferente dele; 2) quase sempre, a exaltação patriótica esconde as razões bem particulares e mesmo escusas do “patriota”. Por exemplo, você é contra o isolamento porque acaba de abrir um barzinho, que é (era) sua esperança de subir minimamente na vida; ser contra por isso é legítimo, mas fica bem melhor defender a abertura do comércio pelo bem da pátria amada, certo?
Não sei nada do homem de óculos e bandeira drapeada, mas ele me evoca imediatamente um livro que acabo de ler e que, hoje, no Brasil, é urgente e necessário. É uma reconstrução histórica (forte e impactante como um grande romance) dos anos de 1919 a 1923 na vida de Benito Mussolini e da Itália que estava se tornando fascista: “M, o Filho do Século”, de Antonio Scurati, da editora Intrínseca.
No fim de 1920, o fascismo do começo, que contava com a adesão dos veteranos dos Arditi (tropas especiais da Primeira Guerra Mundial) e de vários facínoras, começa a se tornar “popular”. Como?
Quem são os novos fascistas, uma massa eventualmente desprezada por Mussolini, mas crucial na sua ascensão ao poder?
Cesare Rossi, companheiro de M. desde a primeira hora, explica que talvez eles tenham conseguido propor um escambo milagroso: “ódio em troca de medo”. “Os novos fascistas são todos pessoas que até ontem tremiam de medo da revolução socialista, gente que vivia de medo, comia medo, bebia medo, deitava-se na cama com medo. Agora, na bolsa de valores dos miseráveis, estão trocando o metal pesado da angústia pela apreciada moeda do ódio mortal.”
“Pequenos burgueses que odeiam: essa é a gente que formará o exército deles. As classes médias rebaixadas por causa das especulações bélicas do grande capital [no Brasil, hoje: pela crise de 2008, pelos anos Dilma, pela estagnação econômica etc.], os burocratas de baixo escalão que, acima de qualquer outra coisa, se sentem insultados pelos sapatos novos da filha do camponês, todas pessoas de bem tomadas pelo pânico, consumidos pela ansiedade. Estão prontas para beijar os sapatos de qualquer novo patrão desde que também lhes seja possibilitado pisar em alguém”, diz o autor, nas páginas 293 e 294.
A diferença entre a Itália pré-fascista e o Brasil de hoje é que, na Europa dos anos 1920, a ideia da possibilidade de uma expansão da revolução soviética não era descabida. Os medos e as insatisfações das pequenas classes médias, na Europa, encontraram assim, como aliados, grandes empresários, eles também apavorados pela iminência de uma revolução comunista. Hoje e aqui, esse pavor não faz sentido; por isso o bolsonarismo reanima o fantasma do suposto marxismo.
Enfim, ainda Scurati: “A revolução não será feita pelos comunistas, mas pelos donos de um apartamento de dois quartos com cozinha em um condomínio da periferia”.
Olho de novo para o “patriota” exaltado do vídeo. Seria possível conversar com ele? Bom, temos algo em comum, ele e eu. Ambos perdemos fé na democracia. Ele não quer STF nem Congresso, só Bolsonaro. Eu não sei se confio ainda num sistema pelo qual mais de uma vez, nos últimos cem anos, uma massa de canalhas se autodenominou “o povo”, vestiu a bandeira e, eventualmente, elegeu um canalha-mor providencial.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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