Aldir Blanc está internado em estado grave num hospital do Rio de Janeiro, com Covid-19. Estou entre os fãs de carteirinha que todo dia torcem —ou rezam, a depender do credo de cada um— para ele sair dessa.
Imagino o dia em que, recuperado, um dos maiores letristas da história de nossa música —o que é dizer muito, dada a alta qualidade média do letrismo brasileiro— vai escrever uma canção falando de quase morte, da vida e da solidão da quarentena, com aquele humor que só ele tem.
Me refiro às metáforas brutais, no limite do mau gosto, que há meio século esse poeta e cronista carioca nascido em 1946 torna palatáveis pelo fraseado perfeito e por uma singular comicidade de cinema mudo: as tardes que caem feito viadutos, a lua cafetina que cobra de cada estrela fria um brilho de aluguel.
Trata-se de uma poesia de choque. Afronta o bom gosto de forma mais direta também: tem hemoptises escarradas no canal do Mangue, meninos de 13 anos barbarizados com mais de cem tiros, rubras cascatas jorrando das costas dos santos entre cantos e chibatas.
No entanto, a exuberante violência brasileira que lhe serve de cenário é um lamaçal no qual nascem belas e estranhas flores. Algumas das mais notáveis são aquelas em que Aldir funde o lírico e o antilírico numa nova unidade que já não é possível quebrar.
Toda vez que se aproxima de sentimentos elevados, o parceiro de João Bosco, Guinga e outros compositores dá um jeito de, sacana, apontar a casca de feijão no sorriso do querubim.
Há os amores que se igualam à ausência de engarrafamento, a Abigail que caiu do céu na pia de batizado e o romance do cantor com a Etelvina, que ficou azul como a equimose que ele mesmo tinha deixado na cara dela.
É como se o encanto e o desencanto, para tocarem de verdade a alma anestesiada do ouvinte, precisassem de imagens pedestres do dia a dia, da barra pesada urbana, onde há quem julgue que a poesia não pode morar. A alegria de quem está apaixonado é como a falsa euforia de um gol anulado.
Aldir tem o beletrismo e o lirismo convencional como inimigos, mas não abre mão da beleza. Pelo contrário: reencontra-a mais tarde, bêbado e sentimental, quando o bar está quase fechando e ela parece cansada, com um torturante band-aid no calcanhar e um risco de sombra derretendo nos cílios —e mais desejável do que nunca.
Nenhuma surpresa porque, “entre a santa e a meretriz, só muda a forma com que as duas se arreganha” (com erro de concordância, é claro).
Essa fusão de sublime e grotesco, que se pode chamar de neobarroca, é uma chave de leitura da alma brasileira que merece atenção. Sobretudo num momento da nossa história em que o grotesco, potencializado pelo pior presidente de todos os tempos, tortura o sublime todo dia no porão.
Nunca soou tão verdadeiro: “O Brazil não merece o Brasil./ O Brazil tá matando o Brasil”. O pastor agora sabe muito bem que nós sabemos da arma na sua mão —e nem oculta ela está mais.
Boa hora de lembrar que aqui, para ter a beleza, é preciso levar sempre em conta a feiura, sob pena de falsear o mundo, entender tudo errado.
A gente que morre como cachorro e grita feito porco, depois de pular igual a macaco —tá lá o corpo estendido no chão—, é a mesma gente que sobrevive porque sabe que, quando o pastor late forte, o bassê faz piu-piu.
“O Brasil caminha pero vaz de ré”, ensinou Aldir Blanc. Ainda temos muito que aprender com esse cara.
Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo.
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