“No dia seguinte ninguém morreu.” É assim que começa o livro de José Saramago sobre um país onde a Morte, em pessoa, decide parar de matar. Intitulada “Intermitências da Morte”, a obra joga luz sobre a engrenagem social da morte —médicos, funerárias, cemitérios, igrejas, jornais. Se ali se parou de morrer, aqui se principia a morrer silenciosamente. Em casa, por Covid-19.
Enquanto ministros de Estado se enfileiram atrás de um projeto político já defunto e os cavaleiros do apocalipse político desviam nossa atenção da pandemia, a morte não para. E é ela que deveríamos focar neste momento. Reportagem em O Globo deste domingo (26), de autoria de Yan Boechat e Gustavo Basso, sugere o tamanho da tragédia silenciosa. Em São Paulo, o número de mortes em casa dobrou durante a pandemia de Covid-19.
Histórias se repetem. Pacientes com sintomas leves procuram serviço de saúde, voltam para casa, e subitamente pioram, quando já é tarde demais. O Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) é acionado. Desde o início deste mês, o Samu, e não mais o Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), passou a ficar responsável pela emissão de declarações de óbito em São Paulo. Familiares esperam, por vezes, horas ao lado do corpo até que o Samu chegue, e algumas horas mais até que o corpo seja limpo, colocado em um saco impermeável e assim colocado em um caixão fechado.
Conforme explicado pelo epidemiologista Otavio Ranzani, o preenchimento da causa da morte segue procedimentos claros. Orientações da Secretaria Estadual de Saúde determinam que seja indicado na declaração de óbito “aguarda exames” nos casos de síndrome respiratória aguda grave sem diagnóstico e em casos suspeitos de Covid-19.
O problema mora, em especial, nos casos não claros de Covid-19 que deveriam ir para o SVO para verificação. Se usarmos o aumento do número de pessoas que morrem em casa como “proxy” para medir estes últimos casos de mortes supostamente naturais, mas que poderiam ser por complicações decorrentes de Covid-19, o Brasil pode ter muitos mais casos de vítimas do que constam oficialmente.
O mesmo ocorreu em outros países, mesmo os mais abastados. No dia 14 de abril, o prefeito de Nova York relatou que a cidade passaria a contar mortes em casa provavelmente causadas por Covid-19, mesmo antes do teste positivo, o que poderia acrescentar cerca de 3.778 mortes aos dados oficiais. Notícias de mortes em casa ou fora de hospitais, como em casas de cuidado para idosos, emergem nos países onde a pandemia foi mais letal, como Espanha e Itália.
À espera ficamos, portanto, das autoridades. Se sérios fôssemos, estaríamos investindo em ensinar a população a identificar sinais de alerta para avaliar eventual piora dos sintomas em casa e, se necessário for, procurar o serviço de saúde. Estaríamos promovendo distanciamento social, aumento de leitos para casos suspeitos e mais testes.
A pandemia que ora nos acomete não aguardará o fim da República, ou o sono profundo das instituições. Tal como a morte, chegou e chegará. Nos encontrará em casa, nas prisões, nas comunidades indígenas, nos asilos. Aqui nos advertiu Saramago, “não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem.”
Texto de Thiago Amparo, na Folha de São Paulo.
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