quinta-feira, 30 de abril de 2020

Em geral, procuramos os outros para melhor nos esconder de nós mesmos

É um bom momento para se perguntar se é pior a solidão ou a companhia dos outros.
Claro, depende de quais outros. E, no caso da solidão, depende do tipo de companhia que somos para nós mesmos —alguns diriam que depende de nossa “interioridade”. É uma expressão da qual não gosto muito. Prefiro imaginar meus pensamentos, sonhos, desejos, conflitos etc. não como se estivessem todos em algum divertículo intestinal escondido, mas fora, ao ar livre, numa nuvem que me acompanha, flutuando ao redor de mim.
Quando eu era criança, seguia meus pais em intermináveis visitas a monumentos e museus. Nos longos períodos de espera, eu escutava “minha orquestra”, um grupo de cinco pequenos músicos imaginários (elfos) que sempre puxava atrás de mim com uma corda (também imaginária).
Como me encaminhei mais para as letras do que para a música, hoje talvez preferisse um coro de podcasts, TEDs, audiolivros, debates e conversas.
Voltando, talvez a pergunta “melhor sozinho ou com outros?” não seja a pergunta certa.
Tentemos uma nova pergunta, então. Para que serve a companhia? Escolher estar com outros para quê?
Se você gosta do mundo como deveria ser, pode ir em frente. “Procuramos os outros para passear num jardim debatendo sobre a primazia da essência ou da existência” ou, melhor ainda, sobre as fantasias e os desejos que mais nos envergonham, mas que, no diálogo, conseguimos reconhecer como nossos.
Essa seria, aliás, uma boa definição da amizade, do amor e do casamento. Ser amigo, amante ou cônjuge não significa compartilhar crenças ou opiniões, mas descobrir coisas de nós mesmos que, sozinhos, nem sequer reconheceríamos como nossas.
Amizade, amor ou casamento de acordo com essa definição são excessivamente raros, mas não porque seria difícil encontrar os outros certos. Eles são raros porque só se tornam possíveis para quem tem a paciência, a liberdade e a coragem de explorar o estranho conjunto de pensamentos, desejos e conflitos que estão naquela nuvem da qual falei antes e que, no fundo, define quem somos, bem além do que imaginamos ser.
E os que estão dispostos a “examinar sua própria vida” (como dizia Platão) são poucos.
Em geral, procuramos os outros não para descobrir ou examinar quem somos com eles e graças a eles, mas para melhor nos esconder de nós mesmos. Ou seja, em regra, procuramos os outros para fugir de nós.
Com raríssimas exceções, o coletivo existe para isto: para nos permitir desconhecer a complexidade e os conflitos da nuvem de nossa “interioridade”.
Você, homem, não quer nem sequer ouvir falar de suas fantasias (reprimidas) de ser possuído como uma mulher? Sem problema: saia com uma turma de pares e bata num travesti junto com seus amigos.
Você, mulher casada, freme de vontade de transar com um colega, mas não quer nem sequer saber disso? Vá logo para o templo no domingo, celebrar com uma assembleia de outros fiéis o suposto “valor” da família cristã.
Você, homem ou mulher, se preocupa com as dificuldades de seu negócio na quarentena, mas se envergonha de pedir ajuda por isso? Junte-se a outros em situações parecidas para gritar que não tem vírus nem quarentena e vamos “reabrir” o país logo.
Na mesma linha, quando você for incomodado pelo judeu (ou boliviano ou venezuelano) que abriu uma lojinha concorrente pertinho da sua, não revele nem admita seu racismo. Basta se unir a outros e gritar que seu protesto não é por você mesmo, mas pelas “nobres” ideias da “raça” brasileira e da pátria homônima.
Você, que sonega impostos há anos (porque “nada voltaria para a gente de qualquer forma”), não se envergonhe, mas se vista de verde amarelo, se junte a uma carreata e peça auxílios, dinheiro e assistência.
Estenda os exemplos, descobrindo a função (principal?) de qualquer coletividade —igreja, partido político ou turma do boteco que seja.
Enfim, você, homem ou mulher, quando sentir as mordidas de mil desejos que lhe foram proibidos, se reúna com os que sentem igual, santifique a mortificação e, sobretudo, persiga incansavelmente os que não cedem às mesmas proibições. Ou seja, junte-se para proibir nos outros o que você não tem a ousadia de viver.
O coletivo é a raiz do mal. Mas o coletivo só consegue ser a raiz do mal por causa da economia neurótica dos indivíduos que precisam do coletivo para se esquecer de seus desejos e de seus conflitos, ou seja, para se esquecer de si.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

Toda celebridade deveria ter equipe para alertar sobre ideias de jerico

Como se não bastasse atazanar o país com litros de suco verde e lemas como “gratidão” e “a vida é mara”, a blogueirinha fitness Gabriela Pugliesi causou revolta ao promover uma festa no meio da quarentena. Com gim tônica em uma mão e hambúrguer patrocinado na outra, a moça beijava seus amigos e gritava “foda-se a vida!”, enquanto profissionais de saúde lutam para salvar milhares de vidas em decorrência da Covid-19.

O que surpreende, mais do que uma pessoa com cérebro do tamanho de uma linhaça ser chamada de “influencer”, é como algum assessor não tenha avisado que tal festa seria uma ideia de jerico. Aliás, toda celebridade deveria contratar profissionais só para isso. Seria o Departamento Vai Dar Merda.
O Departamento Vai Dar Merda não precisa de profissionais gabaritados. O único pré-requisito é ter o mínimo de sensatez para saber que algumas atitudes vão dar merda.
A cantora Madonna causou polêmica ao publicar um vídeo dizendo que a doença “não liga se você é rico ou se é pobre”, enquanto tomava banho em uma banheira com pétalas de rosa. Isso não aconteceria se ela tivesse seu próprio Departamento Vai Dar Merda. Não seria um rombo no orçamento da diva.
Quando o apresentador Roberto Justus pensar em publicar um vídeo falando que a pandemia é uma histeria, o DVDM imediatamente entra em contato: “Boa tarde, Roberto Justus, não faça isso porque vai dar merda”.
A atriz Isis Valverde quer brindar a quarentena com uma taça de vinho, enquanto uma funcionária prepara o almoço? “Alô, dona Isis? É do Departamento Vai Dar Merda... Isso, dona Isis, vai dar merda. E libera sua funcionária para voltar para casa.”
Angélica quer postar foto para contar que, na quarentena, está aprendendo a fazer faxina? “Oi, Angélica, todo mundo sabe que sua casa tem dez quilômetros quadrados e, obviamente, você não faz a faxina. Vai dar merda.”
Um lugar onde o Departamento Vai Dar Merda trabalharia dia e noite seria no Palácio do Planalto. “Olha, seu presidente, se vossa excelência comentar o recorde de mortes pelo coronavírus com um ‘e daí?’, vai dar merda.” Mas os funcionários seriam rapidamente demitidos.
E, diferente da previsão do DVDM, o comentário só ganharia uma nota de repúdio.

Texto de Flavia Boggio, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 29 de abril de 2020

O presidente comete crimes, e daí?

Será de Jair Bolsonaro a responsabilidade pelas mortes evitáveis da pandemia. A conduta estimulou o contágio, o discurso incentivou o desrespeito a ações sanitárias, a gestão desossou a capacidade estatal e tumultuou o ministério.
Mas quem pode cobrar a conta de alguém cuja delinquência se tolera há 30 anos?
Bolsonaro sempre sambou em cima da lotérica jurisprudência constitucional brasileira. Celebrou a ditadura, a tortura e a milícia, pediu fuzilamento e guerra civil que "mate uns 30 mil", ameaçou mulher de estupro e festejou a morte.
O STF nunca foi capaz de discernir, na escatologia verbal e no discurso de ódio, o abuso da liberdade de expressão e da imunidade parlamentar. O Congresso não notou qualquer ofensa à ética parlamentar.
Permitiram que chegasse à Presidência por meio de campanha de desinformação financiada por caixa dois. O TSE segue o "tempo judicial" no modo aleatório. Esperemos. Continuam permitindo que o presidente banalize o crime de responsabilidade e, na pandemia, o crime comum também.
Não bastasse a dieta de apreensão cotidiana que a pandemia nos aplica, a desordem política é administrada em doses diárias de agressão à democracia. Enquanto o governo e o presidente boicotam medidas de contenção da pandemia, o pior cenário de desastre se avizinha.
Fazer justiça a Bolsonaro não pode mais se traduzir na crítica à sua ignorância, na ironia à sua carranca rude e obtusa, ou à masculinidade mal resolvida. Bolsonaro pode ser vulgar e tosco como nunca se viu na Presidência, mas, antes de qualquer coisa, comete crimes. Sobre crimes deve haver consequências jurídicas, não só eleitorais e morais.
Seus crimes de responsabilidade estão definidos na Constituição e na lei 1.079. As dezenas de atos criminosos se distribuem em três categorias: violação de direitos, ataque à autonomia institucional e ofensa à dignidade, honra e decoro do cargo.
Temos a causa de impeachment juridicamente mais sólida da história. Nomear amigo do filho para chefiar a Polícia Federal é exemplar da afronta. "E daí?", debochou com a certeza de sua impunidade.
Seu crime comum praticado à luz do dia está definido no artigo 268 do Código Penal. É crime contra a saúde pública, com pena de detenção.
Pedidos de impeachment se avolumam na Câmara; ao procurador-geral da República chegam notícias-crime; na gaveta do TSE dorme um pedido de cassação de chapa. São caminhos legítimos e alternativos. Dependem da coragem e tirocínio das autoridades.
Segundo mandamento de prudência, não se tira presidente em uma pandemia. Outro mandamento diz que um país não pode enfrentar grave crise sanitária sob liderança de um celerado. Esse mandamento revoga o anterior. A exceção prevalece sobre a regra.
Stefan Zweig conta em suas memórias como Hitler testava uma pílula de maldade de cada vez. Esperava a reação e soltava outra dose, até que se corroessem as defesas institucionais. "Bastava Hitler pronunciar a palavra 'paz' para entusiasmar jornais e fazê-los esquecer de seus atos passados." Zweig relata a dor de olhar para trás e ver que havia janelas de oportunidade para agir, que se fecharam enquanto procuravam a moderação de Hitler.
Antonio Scurati, autor de bestseller sobre a vida de Mussolini, descreve como pensadores da altura de Benedetto Croce menosprezaram a malignidade do Duce. Pensavam que era apenas um personagem mais histriônico do teatro da política. "Croce não entendeu nada sobre o fascismo quando este foi constituído."
Ainda não atinamos a magnitude do bolsonarismo. O certo é que subestimamos. Talvez Bolsonaro seja só o começo de um processo de autocratização definitivo. Ou um acidente reversível e pedagógico, apesar do custo. A janela histórica parece ainda nos conceder uma fresta, quem sabe? Na dúvida, testar é imperativo de sobrevivência.

Texto de Conrado Hübner Mendes, na Folha de São Paulo

Três histórias sobre sombras

Estamos no ano de 1024, na cidade de Gázni, a bela capital da dinastia que governa o Afeganistão. O sultão Mamude (971 - 1030), conquistador do Irã e do Punjab, recebe uma delegação de turcos do Volga. Os visitantes contam que nas longínquas regiões polares ao norte, em certas épocas do ano, as sombras são bem maiores do que as pessoas e o sol não se põe durante dias.
Profundamente devoto, o sultão fica chocado e acusa-os de heresia. Num país em que não há noite, como poderia o fiel muçulmano obedecer ao mandato do Corão de orar 5 vezes por dia? Perante a ira do monarca, os embaixadores turcos temem por suas vidas.
Intervém o sábio da corte, Abu Raiane Albiruni (973 - 1048). Lembrando que a Terra é curva, faz Mamude entender a razão de ser dos longos dias do verão polar. As vidas dos visitantes são salvas. Albiruni se sente feliz e orgulhoso. Conseguiu mais uma vez dissipar as trevas da ignorância. Mas ele sabe que essa guerra não tem fim.
Nascido na região próxima ao mar Aral, Albiruni viajou durante quase toda a vida, à mercê das vicissitudes de guerras e conquistas. Matemático, físico, astrônomo e filósofo, escreveu mais de uma centena de obras científicas. Entre elas, um Tratado das Sombras onde critica “os fanáticos religiosos que sentem náusea quando alguém fala sobre sombras, funções trigonométricas ou altitudes, e para quem a simples menção de um cálculo ou um instrumento científico dá arrepios”.
Eclipses da Lua são causados pela sombra projetada pela Terra sobre o seu satélite. Albiruni observou o eclipse lunar de 24 de maio de 997 na sua cidade natal de Kath e anotou o horário. Previamente havia combinado com um colega em Bagdá para que fizesse o mesmo.
A partir da diferença entre as horas do evento nos dois locais, determinaram a diferença de longitude entre as duas cidades. O método seria aperfeiçoado mais de meio milênio depois, por ninguém menos do que Galileu Galilei. Mas a solução prática para o problema da longitude acabou sendo outra.
O militar norte-americano Robert Peary (1856 - 1920) foi um explorador audaz. Fez várias expedições para alcançar o Polo Norte e, finalmente, afirmou ter conseguido a 6 de abril de 1909. Inclusive tirou uma foto com seus companheiros, em frente a uma bandeira cravada no local, para comprovar a façanha. Ao voltar à civilização, ficou sabendo que o seu compatriota Frederick Cook afirmava ter chegado ao polo quase um ano antes.
Estava instalada a polêmica, com os partidários dos dois disputando a primazia. Em 3 de março de 1911, o Congresso dos Estados Unidos resolveu a questão, decretando em favor de Peary. Mas a história dele nunca convenceu os especialistas. Havia demasiados indícios que não batiam. Um dos mais gritantes está na famosa foto: as sombras são demasiado curtas para essa época do ano no polo...

Texto de Marcelo Viana, na Folha de São Paulo

O bolsominion é tão burro e otário que acredita na própria mentira

Está ainda para ser escrito um estudo sobre o papel da burrice na política brasileira. Comentaristas e historiadores sempre supõem que um homem de Estado se move por estratégia e cálculo.
Os melhores instrumentos de análise podem se quebrar, entretanto, quando confrontados com os atos de um verdadeiro energúmeno.
O presidente Bolsonaro nem precisaria ter feito aquele discurso. Só a foto dele, com todos os ministros enfileirados, já vale por um atestado clínico.
Qual o sentido de chamar todo o gabinete para ouvir, com cara de pastel, aquelas explicações sobre a demissão de Moro? Só se reconhecia, com isso, o tamanho da crise.
O presidente juntou Damares, Weintraub, Araújo, Mourão, Guedes e companhia, como se estivesse anunciando um grande plano para o Brasil. O que apresentou foi um discurso disperso, patético, mentiroso e oco, incapaz de responder à única pergunta que importava no momento.
Por que trocar o chefe da Polícia Federal?
Pela versão de Bolsonaro, tratava-se apenas de atender a um pedido do próprio demitido. E, confessadamente, de pôr alguém na Polícia Federal com quem ele pudesse se entender, sem interferências de Moro.
Reduzido ao seu ponto básico, o discurso de Bolsonaro é um escândalo.
Mas o presidente é tão falto de inteligência que nem mesmo percebe o que está dizendo.
Há burrices e burrices. Uma das que predominam, hoje em dia, talvez seja efeito do Facebook e das geringonças digitais.
As imagens, as piadinhas e memes se sucedem com tanta rapidez, que o sujeito perde a memória.
Presidentes como Trump ou Bolsonaro escrevem qualquer coisa no Twitter, e no dia seguinte já não se lembram mais.
Abre o comércio, fecha o STF, usa a máscara, tira a máscara, tanto faz. As falas de Bolsonaro se sucedem como disparos num estande de tiro esportivo.
Pá, pá, pá. Aí o instrutor pega aquele cartaz com uma silhueta humana para ver quantas balas chegaram ao alvo. Nosso herói nem mesmo se interessa pela pontuação que obteve. “Acertei tudo, claro, está OK?”
No “está OK?” se esconde uma insegurança. Mas a insegurança não se confunde com autocrítica. Estimula, apenas, uma nova rodada de disparos.
Junto com a falta de memória, surge a incapacidade de distinguir entre o anedótico e o essencial. O discurso do presidente sobre a demissão de Moro se perdeu, como é notório, em considerações sobre o aquecimento da piscina, os feitos do “número quatro”, a certidão de nascimento da sogra.
É claro, aquilo fazia sentido em sua argumentação —ele queria dizer que foi investigado com base em suposições infundadas. Um advogado talentoso organizaria o discurso nesse rumo, como quem demonstra um teorema.
Bolsonaro é incapaz disso; vai pulando de fato em fato, de caso em caso, de anedota em anedota, como quem clica nas histórias do Instagram ou vagueia num game tipo “GTA”.
É esse o comportamento mental do bolsominion típico.
Primeiro, ignora o sentido mais amplo de um fenômeno para se aferrar a um detalhe de fácil compreensão.
Aparece um livro sobre educação sexual, por exemplo. O bolsominion não leu, mas fica sabendo que ali tem uma ilustração meio estranha. Será o pretexto para gritar, espernear, denunciar o diabo a quatro.
Mas ninguém vive sem entender as coisas num contexto. Depois de tirar um fato de seu contexto, o bolsominion terá de achar outro.
Aí entra o papel de alguma grande conspiração internacional, que de tão “evidente” não tem como ser contestada.
Se alguém contestar, entra a terceira fase do processo. Trata-se de rotular o inimigo: comunista, petralha etc. Os nazistas preferiam falar em judeus. O tiro sempre “acerta”, porque o atirador é completamente míope e confunde tudo.
Segue-se a fase autocongratulatória. Moro abandona o barco? Não faz mal. Ele era falso; e nós estamos lutando “o bom combate”, como diz Bolsonaro.
Se, apesar de tudo, vier o desmentido, o desastre, o vexame, nenhum problema. Basta se esquecer do que foi dito e do que foi feito. “Torturador? Eu?” Como assim?
Os próprios eleitores de Bolsonaro já se esquecem que votaram nele. “Bolsonarista? Eu? Votei no Amoêdo.”
O bolsominion mente. Mas não tem a inteligência do mentiroso comum. É tão burro que acredita na própria mentira; é otário até quando se arrepende.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

terça-feira, 28 de abril de 2020

Haverá Carnaval


Na sequência da eleição de Jair Bolsonaro —candidato impensável—, da perda de conquistas sociais, do aumento da violência nas periferias, do plano econômico pífio, da pandemia, da saída do ministro Mandetta —único do governo a ser pró-quarentena— imaginávamos que o raio já havia caído vezes suficientes sobre nossas cabeças.
Mas eis que a saída de Moro —ministro-fetiche do bolsonarismo— aprofunda a crise. As frases que terminam com esse “aprofunda a crise” têm sido tão recorrentes que nos obrigam a perguntar se esse fosso tem alçapão.
Se soubéssemos de antemão algumas situações que a vida nos guardava, talvez não tivéssemos encarado muitas manhãs. E é porque não sabemos o que nos espera que temos a chance de renovar a aposta de que valerá a pena enfrentar o dia.
Diante do imponderável, é comum os sujeitos ficarem paralisados prevendo o pior. Mas o imponderável é jogo não decidido. Nem sobre o pior temos certeza ou, pelo menos, não sabemos se e como ele se apresentará. Garantida está a morte, mas, como se diz, não estaremos aqui para vê-la.
Como acordar todas as manhãs no exílio, sem saber quando poderemos ou se poderemos voltar ao nosso país? Ou de forma mais corriqueira, o dia a dia das mulheres enfurnadas em casa com seus bebês recém-nascidos, que parece eterno e enlouquecedor?
Alguém já falou que a pandemia é o puerpério do mundo. Se é, a pandemia em um país como Brasil, que incrementa a crise ao invés de enfrentá-la, é o puerpério no hospício. Como dizem Gil e Caetano “tudo demorando em ser tão ruim”.
Por isso, mais do que nunca, é importante lembrar que haverá Carnaval. Não sabemos quando, nem como, mas haverá Carnaval. E não qualquer um, pois ele será pleno de significados. Precioso como os momentos que reconhecemos não estarem garantidos de antemão, ou seja, todos os bons momentos.
Cada dia de insensatez nesse país tão sofrido tem seus instantes de delicadeza e graça.
Podem ser as gravações de Mônica Salmaso com convidados —mas também de inúmeros outros artistas— que nos ajudam a seguir, apesar dos ensandecidos de plantão.
“Se o mundo ficar pesado, eu vou pedir emprestado a palavra poesia” escreve Jonathan Silva no “Samba da Utopia”, lindamente executado e disponível no YouTube.
Pode ser a literatura que, se por um lado não rendeu tantos volumes lidos quanto os proativos esperavam, por outro, nunca decepciona no quesito alento.
“Somos um país de cidadãos não praticantes” escreve Valter Hugo Mãe no romance “A Máquina de Fazer Espanhóis”, confirmando que a palavra cria e revela a realidade que vivemos.
Podem ser os memes que nos arrancam gargalhadas à revelia, mostrando o chiste na sua dupla vertente —subversiva e de gozo— a sustentar nossa saúde psíquica.
Podem ser os sonhos formulados na leseira das horas que sobram entre o trabalho remunerado, o doméstico e os estudos.
Ir ao cinema, cortar o cabelo, ir ao parque, bater perna na feira da Vila Madalena, sentar em uma mesinha na calçada, andar na avenida Paulista, ir ao MIS, ao MAM, ao Masp, ao IMS, ao MAB..., a um restaurante, à Flip, almoçar com a família, cozinhar para amigos, tomar sol, ficar na sombra, tomar cerveja no boteco, brindar com muitos, ir a festas, a palestras, shows, ao teatro, dar as mãos, encontrar novos parceiros sexuais, cumprimentar com beijos, abraçar, casar, separar, ter um filho, sair da casa dos pais.
Ir aos velórios e enterros de nossos mortos. Não sabemos quando, não sabemos como, mas haja o que houver, haverá Carnaval. Não esqueça a fantasia.

Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Morre-se em casa por Covid-19

“No dia seguinte ninguém morreu.” É assim que começa o livro de José Saramago sobre um país onde a Morte, em pessoa, decide parar de matar. Intitulada “Intermitências da Morte”, a obra joga luz sobre a engrenagem social da morte —médicos, funerárias, cemitérios, igrejas, jornais. Se ali se parou de morrer, aqui se principia a morrer silenciosamente. Em casa, por Covid-19.
Enquanto ministros de Estado se enfileiram atrás de um projeto político já defunto e os cavaleiros do apocalipse político desviam nossa atenção da pandemia, a morte não para. E é ela que deveríamos focar neste momento. Reportagem em O Globo deste domingo (26), de autoria de Yan Boechat e Gustavo Basso, sugere o tamanho da tragédia silenciosa. Em São Paulo, o número de mortes em casa dobrou durante a pandemia de Covid-19.
Histórias se repetem. Pacientes com sintomas leves procuram serviço de saúde, voltam para casa, e subitamente pioram, quando já é tarde demais. O Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) é acionado. Desde o início deste mês, o Samu, e não mais o Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), passou a ficar responsável pela emissão de declarações de óbito em São Paulo. Familiares esperam, por vezes, horas ao lado do corpo até que o Samu chegue, e algumas horas mais até que o corpo seja limpo, colocado em um saco impermeável e assim colocado em um caixão fechado.
Conforme explicado pelo epidemiologista Otavio Ranzani, o preenchimento da causa da morte segue procedimentos claros. Orientações da Secretaria Estadual de Saúde determinam que seja indicado na declaração de óbito “aguarda exames” nos casos de síndrome respiratória aguda grave sem diagnóstico e em casos suspeitos de Covid-19.
O problema mora, em especial, nos casos não claros de Covid-19 que deveriam ir para o SVO para verificação. Se usarmos o aumento do número de pessoas que morrem em casa como “proxy” para medir estes últimos casos de mortes supostamente naturais, mas que poderiam ser por complicações decorrentes de Covid-19, o Brasil pode ter muitos mais casos de vítimas do que constam oficialmente.
O mesmo ocorreu em outros países, mesmo os mais abastados. No dia 14 de abril, o prefeito de Nova York relatou que a cidade passaria a contar mortes em casa provavelmente causadas por Covid-19, mesmo antes do teste positivo, o que poderia acrescentar cerca de 3.778 mortes aos dados oficiais. Notícias de mortes em casa ou fora de hospitais, como em casas de cuidado para idosos, emergem nos países onde a pandemia foi mais letal, como Espanha e Itália.
À espera ficamos, portanto, das autoridades. Se sérios fôssemos, estaríamos investindo em ensinar a população a identificar sinais de alerta para avaliar eventual piora dos sintomas em casa e, se necessário for, procurar o serviço de saúde. Estaríamos promovendo distanciamento social, aumento de leitos para casos suspeitos e mais testes.
A pandemia que ora nos acomete não aguardará o fim da República, ou o sono profundo das instituições. Tal como a morte, chegou e chegará. Nos encontrará em casa, nas prisões, nas comunidades indígenas, nos asilos. Aqui nos advertiu Saramago, “não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem.”

Texto de Thiago Amparo, na Folha de São Paulo

sábado, 25 de abril de 2020

O falso consenso entre os economistas

A crise do coronavírus tem produzido um aparente consenso sobre a necessidade de aumento dos gastos públicos. Vários economistas que se mantinham firmes na defesa da austeridade fiscal hoje defendem o “keynesianismo de guerra” diante da ameaça sanitária e recessiva. Em poucas semanas o gasto público passou do grande problema do Brasil para a principal solução. Mas, por detrás das aparências, há divergências que precisam ser explicitadas para o bem do debate público.
A maioria dos economistas está de acordo com a necessidade de implementação de medidas urgentes para enfrentar a crise, como a adoção de uma renda básica emergencial, maiores gastos com saúde, o apoio do Estado às empresas e trabalhadores, assim como a expansão do crédito. Mas o consenso para por aí.
Enquanto alguns procuram fontes orçamentárias ou patrimoniais imediatas para financiar essas políticas, outros recomendam o financiamento dos novos gastos por meio de emissão monetária ou ampliação da dívida pública, como acontece em outros países, e posterior busca de medidas fiscais progressivas. Ou seja, não há acordo sobre como esses gastos devem ser financiados e os impactos das diferentes alternativas no futuro.
As divergências se aprofundam quando se discute o papel do Estado em médio e longo prazos. Muitos dos que defendem a adoção de um “orçamento de guerra” não escondem a preocupação com a retomada imediata da agenda da austeridade, com aprofundamento dos cortes de gastos e das reformas de redução do Estado, passada a fase aguda da pandemia. Prosseguir nesta agenda que já se mostrou fracassada é irrealista e potencialmente trágico.
A “guerra” contra o vírus deixará marcas e trará a necessidade de reconstrução. Famílias e empresas devem sair da crise mais endividadas e com menos renda, reduzindo a capacidade do setor privado de alavancar o crescimento. Passada a crise sanitária, o Estado precisará ter um papel ativo na retomada, coordenação e indução dos investimentos.
A crise também criará novas demandas de proteção social e serviços públicos. O programa de “renda básica emergencial” pode se prolongar muito além do período de isolamento social, já que a recuperação da renda e da produção não serão imediatas. As demandas da saúde pública também devem aumentar em relação ao passado recente, dada a necessidade de atendimento continuado aos atingidos pela Covid-19, de manutenção da nova infraestrutura e equipamentos e de preparação para uma próxima ameaça sanitária.
Diante desse novo quadro, o dogma da austeridade e a chamada “agenda das reformas” (que nunca foram consensuais) perdem completamente o sentido, assim como o atual teto de gastos. Ficou evidenciado como a retórica do “acabou o dinheiro” e “não há alternativa” é falsa e hipócrita. Da mesma forma que o Estado pode mobilizar recursos para vencer uma guerra sanitária, poderá também fazê-lo para garantir os direitos da população e vencer problemas sociais em tempos de “paz”.

Ana Luíza Matos de Oliveira
Professora visitante da Flacso Brasil (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais)
Guilherme Mello
Professor do Instituto de Economia da Unicamp
Grazielle David
Doutoranda do Instituto de Economia da Unicamp
Pedro Rossi
Professor do Instituto de Economia da Unicamp


Este texto foi publicado na Folha de São Paulo.

Deus morreu de Covid-19?

A pedido da pediatra, escolhemos uma rua bem vazia e levamos nossa filha para dar uma volta. O dia estava lindo, mas eu só conseguia pensar na minha cachorra se esfregando em tudo e levando o vírus maligno pra casa.
Eu não parava de imaginar que aquele jovem atleta a cinco metros poderia, a qualquer momento, soltar um espirro veloz e assassino que chegaria até nós. O dia bonito só piorava a sensação terrível de que não existem mais dias bonitos.
Minha filha estava assustada com o vento chacoalhando as árvores e com os “cachorros bravos” em alguns quintais, e eu queria dizer a ela a frase mais reconfortante que eu lembro da minha infância: não precisa ter medo! Sempre que meus pais ou meus avós me falavam isso, eu via dias ensolarados, mesmo com o céu armando o maior temporal.
Porém, não consegui abrir a boca. Há anos eu não tinha uma crise de pânico e pude sentir ela chegar, acelerando meus pés ao mesmo tempo que amolecia os joelhos. Gelando minhas mãos ao mesmo
tempo que fervia o peito. Fazendo os dentes de cima empurrarem os de baixo até meu rosto parecer uma cabeça de boneca enterrada por um soco.
Fui ensinada, quando criança, que Deus existe. Meus amigos criados por pais intelectuais sempre riram de mim. Mas eu, lá no fundo, é que estava rindo deles. Acreditei em Deus todos os dias da minha vida, mas naquele segundo, vendo minha cidade pulsante transformada em locação de filme de zumbis, tendo que lançar o dinheiro para o menino que pedia ajuda pra comer (como chegar muito perto das pessoas sem ter medo de morrer?), eu senti, pela primeira vez, que estamos sozinhos neste planeta.
Que meu pai, aos quase 80 anos, não pode fazer nada por mim. Que meu país, liderado por um demente psicopata, eleito pelo fascismo cotidiano, não pode fazer nada por mim. Que a ciência (que pavor, meu Deus!), segue respondendo diariamente que ainda não sabe o que fazer.
Eu lembro dos milhões de vezes que minha mãe me disse para enfrentar a vida. Sair do meu quarto, pegar o avião, não desmarcar as festas e as reuniões. Lutar com todas as minhas forças contra as minhas crises. “E daí se tiver muita gente?” E eu lutei e fiz tanta terapia e estudei tanta psicanálise que estava indo muito bem. E agora? Agora eu tenho medo até do boleto do condomínio que chega por debaixo da porta.
Eu passo tanto álcool que invalido o código de barras. Estar isolada no meu apartamento é como ter voltado mil casas no joguinho. Meu pânico deixou de ser fantasia ególatra e virou consciência social.
Minha filha continua assustada e me olha. O pai a pega no colo e diz: “Não precisa ter medo, é só o vento. Acho que o cachorro está latindo porque quer brincar”. Ela se acalma e acha que os galhos estão dançando. Dá tchau para os cães. Ou será que sou eu que acho? Sua infância está a salvo por enquanto. A minha também. Lembro que não tenho Deus, mas tenho o outro. Daqui a pouco é ele quem vai deitar meio angustiado no sofá e precisar de mim.
Na falta de Deus ou da crença em heróis, resta a gente. Penso nos amigos de quem, por gostar tanto, fico apertando a carne do braço e nos meus pais almoçando massa recheada de queijo comigo. Minha cabeça retorna às proporções humanas e deixo de ser um brinquedo feito de plástico oco pronto para ser esquecido numa caixa.
Faço tudo “o que dá pra fazer”, e isso me parece uma nova religião. Agora eu rezo todos os dias para essa divindade chamada “o que dá pra fazer”. Tenho vontade de erguer um altar para o santo “o que dá pra fazer”. A soma do meu “o que dá pra fazer” com “o que dá pra fazer” de todos que querem fazer alguma coisa que preste é o que chamo agora de fé.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Eu era uma traça gorda, mas o meu jantar foi retirado da estante de livros

Sou uma traça.
Há tempos tive a felicidade de instalar-me numa imensa estante de livros e por isso eu era uma traça gorda, muito bem alimentada. E eu não admitia que viessem me falar em fazer regime porque minha despensa estava muito longe de se esgotar. Além do mais, o dono da estante deveria ser muito ocupado, pois raramente aparecia para perturbar as minhas refeições.
Mas agora tenho uma queixa dolorosa: dizem que um animalzinho minúsculo, muito menor do que eu, voraz, guloso, resolveu habitar nos humanos e até matá-los!
Com medo disso, o dono da estante e dos livros está preso em casa para se esconder desse anãozinho. E vejam que infelicidade! Eu estava justamente jantando um volume dos “Irmãos Karamazov”, uma refeição para quatrocentos talheres, não tinha ainda devorado nem a página de rosto, quando meu jantar foi retirado da estante! Espanado do pó e do bolor, o livrão foi sacudido e eu tive de me esconder debaixo da lombada.
O meu jantar e eu fomos levados para o colo do dono da estante e eu tive de me virar para não ser descoberta a cada página virada.
Bem encolhida, fiquei a pensar no que irá acontecer com a minha espécie... Lembro-me de ficar sabendo, ao devorar um capítulo de “Biologia para Principiantes”, que toda a vida na Terra tinha sido exterminada há milhões de anos pela colisão de um imenso rochedo que viera dos ares. Quer dizer que agora a minha espécie vai ser exterminada não por um gigante, mas por um minúsculo verme? Bem, verme sou eu, esse invasor não passa de um cocozinho de verme!
Com o rabo do olho, vejo um jornal dobrado na mesa ao lado de onde se senta o dono da estante e dos livros. E ali está escrito que o governo do Uruguai, por causa de todo mundo de seu país estar preso em casa para fugir do anãozinho, está distribuindo cestas básicas com comida para as famílias e, junto com latas e pacotes, na tal cesta vão... livros!
Livros para ocupar essa gente toda que não tem o que fazer fechados em casa! Não são livros para alimentar a minha espécie, não! São verdadeiros atentados a minha espécie! Será... será que eu vou ter de emagrecer? Ai, ai, ai, “Os Irmãos Karamazov” eram tão gostosinhos...

A crônica é de Pedro Bandeira, publicada na Folha de São Paulo, no suplemento infantil. 

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Viva Aldir Blanc!

Aldir Blanc está internado em estado grave num hospital do Rio de Janeiro, com Covid-19. Estou entre os fãs de carteirinha que todo dia torcem —ou rezam, a depender do credo de cada um— para ele sair dessa.
Imagino o dia em que, recuperado, um dos maiores letristas da história de nossa música —o que é dizer muito, dada a alta qualidade média do letrismo brasileiro— vai escrever uma canção falando de quase morte, da vida e da solidão da quarentena, com aquele humor que só ele tem.
Me refiro às metáforas brutais, no limite do mau gosto, que há meio século esse poeta e cronista carioca nascido em 1946 torna palatáveis pelo fraseado perfeito e por uma singular comicidade de cinema mudo: as tardes que caem feito viadutos, a lua cafetina que cobra de cada estrela fria um brilho de aluguel.
Trata-se de uma poesia de choque. Afronta o bom gosto de forma mais direta também: tem hemoptises escarradas no canal do Mangue, meninos de 13 anos barbarizados com mais de cem tiros, rubras cascatas jorrando das costas dos santos entre cantos e chibatas.
No entanto, a exuberante violência brasileira que lhe serve de cenário é um lamaçal no qual nascem belas e estranhas flores. Algumas das mais notáveis são aquelas em que Aldir funde o lírico e o antilírico numa nova unidade que já não é possível quebrar.
Toda vez que se aproxima de sentimentos elevados, o parceiro de João Bosco, Guinga e outros compositores dá um jeito de, sacana, apontar a casca de feijão no sorriso do querubim.
Há os amores que se igualam à ausência de engarrafamento, a Abigail que caiu do céu na pia de batizado e o romance do cantor com a Etelvina, que ficou azul como a equimose que ele mesmo tinha deixado na cara dela.
É como se o encanto e o desencanto, para tocarem de verdade a alma anestesiada do ouvinte, precisassem de imagens pedestres do dia a dia, da barra pesada urbana, onde há quem julgue que a poesia não pode morar. A alegria de quem está apaixonado é como a falsa euforia de um gol anulado.
Aldir tem o beletrismo e o lirismo convencional como inimigos, mas não abre mão da beleza. Pelo contrário: reencontra-a mais tarde, bêbado e sentimental, quando o bar está quase fechando e ela parece cansada, com um torturante band-aid no calcanhar e um risco de sombra derretendo nos cílios —e mais desejável do que nunca.
Nenhuma surpresa porque, “entre a santa e a meretriz, só muda a forma com que as duas se arreganha” (com erro de concordância, é claro).
Essa fusão de sublime e grotesco, que se pode chamar de neobarroca, é uma chave de leitura da alma brasileira que merece atenção. Sobretudo num momento da nossa história em que o grotesco, potencializado pelo pior presidente de todos os tempos, tortura o sublime todo dia no porão.
Nunca soou tão verdadeiro: “O Brazil não merece o Brasil./ O Brazil tá matando o Brasil”. O pastor agora sabe muito bem que nós sabemos da arma na sua mão —e nem oculta ela está mais.
Boa hora de lembrar que aqui, para ter a beleza, é preciso levar sempre em conta a feiura, sob pena de falsear o mundo, entender tudo errado.
A gente que morre como cachorro e grita feito porco, depois de pular igual a macaco —tá lá o corpo estendido no chão—, é a mesma gente que sobrevive porque sabe que, quando o pastor late forte, o bassê faz piu-piu.
“O Brasil caminha pero vaz de ré”, ensinou Aldir Blanc. Ainda temos muito que aprender com esse cara.

Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo

Pneumonia do coronavírus mata silenciosamente; veja como tratar a doença antes que seja tarde

Pratico medicina de emergência há 30 anos. Em 1994, inventei um sistema de imagens para ensinar intubação, o procedimento de inserir tubos para respiração. Isso me levou a realizar pesquisas desse procedimento e mais tarde dar cursos do mesmo a médicos do mundo todo, nas últimas duas décadas.
No final de março, quando um grande número de pacientes da Covid-19 começou a lotar os hospitais de Nova York, fui voluntário para passar dez dias ajudando no Hospital Bellevue, onde estudei. Naqueles dias, percebi que não estamos detectando com rapidez suficiente a pneumonia mortal causada pelo vírus, e que poderíamos estar fazendo mais para manter os pacientes desligados de respiradores —e vivos.
Na longa viagem de carro de minha casa em New Hampshire até Nova York, liguei para meu amigo Nick Caputo, médico de emergência no Bronx, que já estava participando de tudo. Eu queria saber o que ia enfrentar, como me manter seguro e as ideias dele sobre gerenciamento das vias aéreas com essa doença. "Rich", ele disse, "é diferente de tudo o que já vi."
Ele tinha razão. A pneumonia causada pelo coronavírus teve um impacto terrível no sistema hospitalar da cidade. Normalmente, um pronto-atendimento tem uma mistura de pacientes com condições que vão de sérias, como infartos, derrames e lesões traumáticas, a não ameaçadoras, como pequenos ferimentos, intoxicação, lesões ortopédicas e dores de cabeça.
Durante meu período recente no Bellevue, porém, quase todos os pacientes do PS tinham pneumonia da Covid-19. Na primeira hora de meu primeiro turno, inseri tubos para respiração em dois pacientes.
Até pacientes sem queixas respiratórias tinham pneumonia causada pelo coronovaírus. Um paciente que levou uma facada no ombro, que radiografamos por temer que ele tivesse um colapso do pulmão, na verdade tinha pneumonia da Covid. Em pessoas nas quais fizemos tomografia computadorizada porque se feriram em quedas também encontramos pneumonia. Pacientes idosos que tinham desmaiado por motivos desconhecidos e diversos pacientes diabéticos também tinham a doença.
E isto foi o que realmente nos surpreendeu: esses pacientes não relataram qualquer sensação de problemas respiratórios, apesar de seus raios X do peito mostrarem pneumonia difusa e seu nível de oxigênio estar abaixo do normal. Como isso era possível?
Estamos apenas começando a reconhecer que a pneumonia da Covid inicialmente causa uma forma de privação de oxigênio que chamamos de "hipóxia silenciosa" —"silenciosa" porque tem uma natureza insidiosa, difícil de detectar.
A pneumonia é uma infecção dos pulmões em que os sacos de alvéolos se enchem de fluido ou pus. Normalmente, os pacientes apresentam desconforto no peito, dor quando respiram e outros problemas respiratórios. Mas, quando a pneumonia da Covid ataca, os pacientes inicialmente não sentem falta de ar, mesmo quando seus níveis de oxigênio caem. E quando eles sentem a falta de ar estão com níveis de oxigênio alarmantemente baixos e pneumonia de moderada a severa (como se vê nos raios X do tórax). A saturação de oxigênio normal para a maioria das pessoas no nível do mar é de 94% a 100%; os pacientes de pneumonia da Covid que vi tinham saturação de oxigênio de até 50%.
Para minha surpresa, a maioria dos pacientes que atendi disse que estava doente havia cerca de uma semana, com febre, tosse, enjoo estomacal e cansaço, mas só sentiu falta de ar no dia em que foi para o hospital. Claramente, a pneumonia tinha começado dias antes, mas quando eles acharam que precisavam ir para o hospital já estavam em condição crítica.
Nos departamentos de emergência nós inserimos tubos de respiração em pacientes críticos por diversos motivos. Em meus 30 anos de prática, entretanto, a maioria dos pacientes que precisou de entubação estava em choque, tinha condição mental alterada ou dificuldade para respirar. Os pacientes que precisaram de intubação por causa de hipóxia aguda estão com frequência inconscientes ou usando todos os músculos possíveis para conseguir respirar. Estão em extremo sofrimento. Os casos de pneumonia da Covid são muito diferentes.
A vasta maioria dos pacientes de pneumonia da Covid que conheci tinham níveis de oxigênio notavelmente baixos durante a triagem —aparentemente incompatíveis com a vida—, mas ainda usavam seus celulares quando os colocamos em monitores. Embora respirando rapidamente, eles tinham aparentemente um desconforto mínimo, apesar do nível de oxigênio perigosamente baixo e de uma séria pneumonia mostrada nos raios X.
Estamos apenas começando a entender por que isso acontece. O coronavírus ataca as células do pulmão que fazem o surfactante —substância que ajuda a manter os sacos de ar dos pulmões abertos entre respirações e é crítica para a função pulmonar normal. Quando a inflamação da pneumonia da Covid começa, faz os sacos de ar murcharem, e os níveis de oxigênio caem. Mas os pulmões inicialmente continuam funcionando, ainda não estão rígidos ou cheios de fluido. Isso significa que os pacientes ainda conseguem expelir o dióxido de carbono —e sem o acúmulo desse gás eles não sentem falta de ar.
Os pacientes compensam o baixo nível de oxigênio no sangue respirando mais depressa e mais fundo —e isso acontece sem eles perceberem. A hipóxia silenciosa, e a reação psicológica do paciente a ela, causa ainda mais inflamação e o colapso de mais sacos alveolares. A pneumonia se agrava até que os níveis de oxigênio despencam. Com efeito, o paciente está ferindo os próprios pulmões ao respirar cada vez mais forte. Vinte por cento dos pacientes de pneumonia da Covid seguem para uma segunda fase, mais mortal, da lesão pulmonar. O fluido se acumula e os pulmões enrijecem, o CO2 aumenta e os pacientes desenvolvem falência respiratória aguda.
Quando os pacientes têm dificuldade perceptível para respirar e se apresentam no hospital com níveis de oxigênio perigosamente baixos, muitos deles vão precisar de um ventilador, ou respirador.
A hipóxia silenciosa que progride rapidamente para falência respiratória explica os casos de pacientes de Covid-19 que morreram de repente depois de não sentirem falta de ar. (Parece que a maioria dos pacientes de Covid-19 experimenta sintomas relativamente brandos e supera a doença em uma semana ou duas sem tratamento.)
Um dos principais motivos pelos quais essa pandemia está sufocando nosso sistema de saúde é a gravidade alarmante de lesão pulmonar que os pacientes têm quando chegam ao pronto-atendimento. A Covid-19 mata principalmente por meio dos pulmões. E como tantos pacientes só vão para o hospital quando sua pneumonia já está avançada, muitos acabam em ventiladores, causando escassez de máquinas. E mesmo com os ventiladores muitos deles morrem.
Evitar o uso do ventilador é uma grande vitória para o paciente e para o sistema de saúde pública. Os recursos necessários para os pacientes em ventiladores são incríveis. Eles necessitam de diversos sedativos para que não rejeitem o ventilador ou removam acidentalmente os tubos de respiração; precisam de cateteres intravenosos e arteriais, medicamentos e bombas intravenosos. Além de um tubo na traqueia, eles também recebem tubos no estômago e na bexiga. Equipes de pessoas são necessárias para movimentar cada paciente, virando-os sobre o estômago e depois de costas duas vezes por dia para melhorar a função pulmonar.
Existe uma maneira de identificarmos mais pacientes que têm pneumonia da Covid mais cedo e tratá-los com maior eficácia, e isso não exigiria esperar um teste de coronavírus no hospital ou num consultório médico.
É detectar precocemente a hipóxia silenciosa, por meio de um equipamento médico comum que pode ser comprado sem prescrição na maioria das farmácias: um oxímetro de pulso.
A oximetria de pulso é tão simples quanto usar um termômetro. São pequenos equipamentos que são colocados na ponta de um dedo e se ligam com um botão. Em alguns segundos, aparecem dois números: a saturação de oxigênio e o ritmo dos batimentos cardíacos, ou pulsação. Os oxímetros de pulso são extremamente confiáveis para detectar problemas de oxigenação e ritmos cardíacos elevados.
Esses equipamentos ajudaram a salvar a vida de dois médicos de emergência que conheço, avisando-os precocemente da necessidade de tratamento. Quando eles notaram que seus níveis de oxigênio estavam diminuindo, foram para o hospital e se recuperaram (um deles esperou mais e precisou de tratamento mais longo). A detecção da hipóxia, o tratamento precoce e o monitoramento estrito aparentemente também funcionaram para Boris Johnson, o primeiro-ministro britânico.
A oximetria de pulso generalizada para a pneumonia da Covid —quer as pessoas usem equipamentos em casa ou procurem clínicas médicas— poderia oferecer um sistema de advertência precoce para os tipos de problemas respiratórios associados à pneumonia da Covid.
As pessoas que usam o equipamento em casa poderiam consultar seus médicos para reduzir o número de pacientes que procuram os PA sem necessidade porque interpretaram mal o dispositivo. Também pode haver pacientes que têm problemas crônicos de pulmão não identificados e têm saturação de oxigênio ligeiramente baixa ou no limite não relacionada à Covid-19.
Todos os pacientes que tiveram testes positivos para o coronavírus deveriam ter monitoramento de oximetria de pulso durante duas semanas, período em que a pneumonia da Covid geralmente se desenvolve. Todas as pessoas com tosse, fadiga e febre também deve ter monitoramento por oxímetro de pulso mesmo que não tenham feito o teste do vírus ou que seu teste rápido dê negativo, porque estes são apenas 70% precisos. A vasta maioria dos americanos que foram expostos ao vírus não sabe disso.
Há outras coisas que também podemos fazer para evitar o recurso imediato à entubação e ao ventilador. Manobras de posicionamento do paciente (fazê-lo deitar-se de lado e sobre a barriga) abre as partes inferiores e posteriores dos pulmões mais afetadas na pneumonia da Covid. A oxigenação e o posicionamento ajudaram pacientes a respirar com mais facilidade e pareceram evitar o avanço da doença em muito casos. Em um estudo preliminar do doutor Caputo, essa estratégia ajudou a evitar que três em cada quatro pacientes com pneumonia da Covid avançada precisassem de ventilador nas primeiras 24 horas.
Até hoje, a Covid-19 matou mais de 40.600 pessoas nos Estados Unidos —mais de 10 mil só em Nova York. Os oxímetros não são 100% precisos, e não são uma panaceia. Ainda haverá mortes e resultados ruins que são inevitáveis. Não compreendemos totalmente por que certos pacientes ficam tão doentes, ou por que alguns desenvolvem falência de múltiplos órgãos. Muitos idosos, já fracos com doenças crônicas, e os que têm doenças pulmonares subjacentes sofrem grandes problemas com a pneumonia da Covid, apesar de tratamentos agressivos.
Mas podemos fazer melhor. Neste momento, muitas alas de emergência estão sendo superlotadas por essa doença ou esperando sua chegada. Devemos dirigir recursos para identificar mais cedo e tratar a fase inicial da pneumonia da Covid, procurando a hipóxia silenciosa.
Está na hora de irmos à frente do vírus, em vez de persegui-lo.

Texto de Richard Levitan, para o The New York Times, reproduzido na Folha de São Paulo