terça-feira, 31 de março de 2020

Ficar em casa por dias sendo consumida pela paranoia é minha especialidade

ia um: Li que uma das táticas dos chineses para atravessar o período de isolamento era escrever um diário. Bom, cá estamos. Preciso confessar uma coisa. Ficar em casa por dias a fio sendo consumida pela paranoia é minha especialidade há anos, então acho que vou tirar essa quarentena de letra.
Dia dois: Se não fosse pelos “pandememes”, eu já teria enlouquecido.
Dia três: Fui ao supermercado e fiquei surpresa com o movimento na rua. Idosos, aos bandos, circulavam livremente, quebrando regras, rindo na cara do perigo. Talvez não tenham uma rede de apoio que faça suas compras, talvez tenham ignorado o apelo de seus familiares, talvez tenham levado a sério as recomendações do presidente, vai saber.
Dia quatro: A Organização Mundial da Saúde poderia ter avisado que relacionamentos com mais de sete anos em quarentena são pacientes de alto risco. Muito se fala sobre o colapso do sistema de saúde, mas, ao fim do isolamento, a vara da Família também vai sentir o impacto do coronavírus com a quantidade de separações.
Dia cinco: Convencida de que o vizinho de cima estava dando uma festa, fui até lá disposta a achatar a curva da cara dele. Mas o rapaz só estava mudando a arrumação dos móveis ouvindo DJ Alok nas alturas.
Dia seis: Quando acho que estou perdendo a noção da realidade, penso em Jair Bolsonaro. Não que isso me deixe mais calma. Eu nunca vou perdoar o presidente pela campanha natimorta #OBrasilNãoPodeParar e por fazer o Witzel e o Doria parecerem fadas sensatas.
Dia sete: Estou rouca. Não sei se é Covid-19 ou se gritei muito ontem durante o panelaço contra o governo. Nessas horas eu só queria estar confinada com o Drauzio Varella.
Dia oito: Há um mês estávamos nas ruas, aglomerados, purpurinados, suados e seminus, sem temer perdigoto algum. Parece que foi no século passado. Aquela música do Chico, “Vai Passar”, não me sai da cabeça. “E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia, que se chamava Carnaval...”
Dia nove: Pode ser o tédio falando, mas eu adoraria que uma carreata contra a quarentena passasse na minha rua só para desovar parte do meu estoque de ovos caipiras em uma Tucson.
Dia dez: Ser testemunha ocular da história é bem mais estressante do que eu imaginava. Só espero que na semana que vem a gente ainda consiga rir dos “pandememes”.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 30 de março de 2020

Horizonte


Pra longe é minha lente
De névoa é minha quarentena
Te quero aqui de repente

Por Bárbara Sanco

30/03/2020.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Caro presidente, matei minha avó

Eu amava minha avó, mas tive que matá-la. Na frente de casa tem uma agência bancária da qual gosto muito. É lá que vou quando preciso sacar dinheiro do caixa eletrônico que, diferente da minha finada avó, funciona 24 horas.
Minha avó começava a bocejar às seis da tarde e capotava de sono às nove da noite, seu tempo de operação era incomparável ao de um caixa eletrônico. Por isso, quando nosso presidente me mandou
escolher entre minha avó e a economia, matei minha avó.
Vovó fazia bastante carinho em meus cabelos. Ela também me elogiava: “Minha filha, você está cada dia mais bonita”. Mas, francamente, o salão de beleza do shopping faz muito mais por mim. Corta, lava, hidrata, escova, faz botox capilar, balayage e mechas californianas. Quando vou pagar a conta, me dizem o quanto sou chique, divina e poderosa.
Então, quando nosso presidente me mandou escolher entre minha avó e a economia, matei minha avó.
Sinto saudades, claro. Mas ela já caminhava com certa dificuldade e, segundo o médico, não tinha muito como melhorar. Já nosso ministro “Chicago boy” vive dizendo que a economia brasileira, hoje mais manca que minha finada vozinha, em breve estará correndo maratonas. Por isso, matei minha avó. Te aconselho a fazer o mesmo.
Não adianta só se vestir inteiro de verde e amarelo e ir pra Paulista mostrar que não tem medo de “gripezinha”. Arminha com a mão é para amadores. É preciso provar que é um verdadeiro patriota, matando sua avó.
Vovó falava mal dos irmãos, das amigas com quem viajava pra Serra Negra em excursão e, muito cá entre nós, metia o pau na minha mãe. Completamente diferente do pastor da igreja aqui do bairro. Esse aí só fala bem de todo mundo. Diz que somos escolhidos, abençoados, maravilhosos.
O presidente declarou que se não continuarmos lotando as igrejas… bem, ele não explicou exatamente o que isso tem a ver com a economia. Mas eu sei que tem porque não sou completamente idiota.
Então, entre uma velhinha fofoqueira e um dízimo salvador, eu preferi matar minha avó. Entre os R$ 100 que ela me dava no Natal e as facilidades que estão dando na hora de pagar as faturas dos cartões Havan, eu decidi matar a minha avó.
Entre seu afetuoso bolinho de bacalhau e o Baby Back Ribs com delicioso molho barbecue do Madero Steakhouse, escolhi dar cabo da velha.
Ah, eu estava cansada de ficar trancada aqui. Tudo pra quê? Evitar, como disse aquele empresário-apresentador (não à toa ele carrega justiça em seu nome) a morte de 10% a 15% de idosos?
Li em algum lugar que jovens também podem vir a óbito mas, francamente, só se eles não forem atléticos como o próprio empresário-apresentador e o nosso presidente-mito. A pessoa não malha e quem fica fraca é a economia?
Há dias em que saio bem cedo e volto bem tarde. Pelo caminho, encontro muita laranja e bananinha, um sinal divino de que estou no rumo certo. Claro que não é fácil! Estou péssima, deprimida, arrependida.
Nada no mundo compra o que eu sentia deitada no colo da minha avó (e, mesmo que comprasse, ainda está tudo fechado e pela internet pode demorar). Mas eu vejo uma luz no fim do túnel: acho que é uma agência de publicidade funcionando. Vai ficar tudo bem.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 26 de março de 2020

Carta aberta de um empresário nesses tempos de coronavírus

Fala, pessoal, aqui quem escreve é o Serginho Albuquerque, empresário e empreendedor. Peguei este espaço emprestado para dar um recadinho aos brasileiros nesses tempos de coronavírus.
Estou vendo muita gente apavorada, dizendo que esse vírus pode matar milhões.
Pessoal, eu estudei o assunto, passei anos sabáticos em Nova York e fiz cursos na Casa do Saber. Posso dizer com convicção: isso é histeria de biólogos da USP, pessoas que nunca geriram um negócio porque
passam o dia fumando maconha e tocando berimbau.
Eu falo com gente séria, geradores de empregos e pagadores de impostos.
Acabei de fazer um call com doutor Tutu Abdala, responsável pelo meu implante capilar, que afirmou que a doença não passa de uma gripezinha.
Recebi de um dos meus grupos de WhatsApp de pessoas influentes (não confundam com influenza, kkkk, vou mandar essa piada no grupo) um estudo da Massachusetts University. Quem morre de Covid-19 são velhinhos e gente que, mais cedo ou mais tarde, iria morrer. É como quem tem alergia a amendoim. Se morrer, morreu.
Tem idoso morrendo na Itália? Tem. Mas o país não está com excesso de velho? O coronavírus já resolve esse problema. Se sentir falta, o governo italiano pode importar os idosos daqui. Eu passaria
minha velhice na costa Esmeralda sem nenhum problema.
Também falam do desespero nas favelas. Pessoal, essa gente lida com dengue, enchente e chicungunha. Não vai ser um vírus chinês que vai abalá-los. O que não pode é deixar todo mundo em casa, vagabundeando. O que são alguns milhares de mortos perto da economia?
Se continuar essa histeria, vamos ter que demitir. Mas eu sei que dinheiro não é problema para o brasileiro. Ele pega um limão, faz uma limonada, abre uma loja e, como eu, funda uma startup. Quem sabe vira uma unicórnio?
É isso aí, pessoal. Faço aqui um convite (não confundam com Covid, kkkk, vou mandar no grupo essa também): quem quiser passar no meu estabelecimento, a Chaparia da Villa, pode comer um pane al burro, que é uma releitura bacana do pão na chapa. Meus negócios continuam abertos a todo o vapor. Para resolver essa epidemia, nada melhor do que a mão invisível do mercado. Com muito álcool em gel, é claro (mais uma, kkkk).
Abraçaço, S.A.

Crônica de Flávia Boggio, na Folha de São Paulo

Para Agamben, pandemia funciona como pretexto para o poder satisfazer sua sede de mais domínio

Giorgio Agamben, um dos maiores filósofos vivos, publica regularmente breves crônicas no site da editora Quodlibet. Os três últimos textos comentam as medidas de confinamento e quarentena em vigor hoje na maior parte do mundo.

Eles são também uma ótima introdução às ideias centrais do pensamento de Agamben.
Para ele, qualquer poder sempre tende a querer uma dominação mais capilar, profunda e desobstruída da existência da gente.
E, para esse fim, o poder moderno achou uma artimanha perfeita. Deixou que a medicina erigisse sua arte e seu propósito em sistema de valores; com isso, o poder convenceu a todos de que o valor supremo seria o simples fato de viver ou sobreviver (o que Agamben chama de a “vida nua”).
Se sobreviver for o valor supremo, o poder será autorizado a cometer abusos à condição que ele nos prometa prolongar nossa vida. O moto de uma política fundada na valorização absoluta da simples sobrevivência seria: viverás mais se renunciares à tua liberdade ou a parte dela.
Para Agamben, a pandemia atual, assim como o terrorismo antes disso, podem ser ameaças perfeitamente reais, mas funcionam como pretextos para o poder reduzir a nossa liberdade e satisfazer a sua sede de mais domínio.
Não acho que Agamben se oponha hoje às medidas de quarentena e confinamento em vigor. O que lhe importa é chamar a atenção para a parte de liberdade à qual parecemos estar facilmente prontos a renunciar em troca de mais tempo de vida (ou da promessa de mais tempo de vida).
Acrescento: até o século 18, um valor era aquela coisa pela qual daríamos a vida. Desde então, é a vida que se tornou um valor, pelo qual, obviamente, não podemos dar a vida, mas podemos, isso sim, dar a nossa liberdade.
Uma ideia central na obra de Agamben é o “estado de exceção”, ou seja, a declaração pela qual um governo se atribui mais poderes sobre seus sujeitos em nome de circunstâncias excepcionais (guerra, catástrofe natural etc.). Até aqui, o governo brasileiro decretou o “estado de calamidade”, que parece corresponder à ameaça que encaramos. O medo de desordens por falta de abastecimento poderia levar o governo a declarar, por exemplo, o “estado de sítio”, que implicaria o fechamento temporário do Congresso.
As intervenções de Agamben produziram um debate na comunidade filosófica. Muitos —eu concordo com eles—, a começar por Jean-Luc Nancy (ilustre filósofo francês), abrandaram, por assim dizer, a posição de Agamben: mesmo na esperança de que a gente invente ou reencontre valores diferentes da simples “vida nua”, não podemos por isso desprezar a vida e sua preservação.
Slavoj Zizek (também numa resposta a Agamben) vai na mesma direção, acrescentando uma pitada de otimismo: ele espera que a pandemia nos force a inventar novas maneiras de vivermos juntos.
Alimento uma esperança parecida, mas hoje Agamben me serve para introduzir uma regra que tento seguir em matéria de liberdade.
Há dois tipos de liberdade: a liberdade para fazer algo e a liberdade de alguma coisa da qual queremos nos ver livres.
Em 1941, F. D. Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, sonhou com um mundo que respeitasse quatro liberdades fundamentais, duas “liberdades para” —liberdade para falar o que a gente pensa e liberdade para prestar culto ao deus (ou à ausência de deus) que cada um quiser— e duas “liberdades de” —sermos livres do medo e sermos livres da necessidade bruta, ou seja, termos o básico para viver dignamente. As quatros liberdades foram imortalizadas por Norman Rockwell ​em quatro quadros indissociáveis, que merecem ser meditados. É a partir deles (sempre juntos) que podemos pensar: qual é a sociedade que queremos?
Voltarei ao assunto, mas desde já, uma regra (que talvez seja um dos sentidos da intervenção de Agamben): nunca devemos renunciar à liberdade para viver como queremos sob pretexto de que essa renúncia nos livraria do medo ou da necessidade. Não devemos porque, simplesmente, nunca é preciso.
Confinamento e quarentena são bem vindos hoje, e esperemos que funcionem, mas sem perder a desconfiança que o poder sempre deveria inspirar —sobretudo quando ele emana de um governo que não precisou da pandemia para flertar abertamente com a ditadura, a supressão das liberdades e o fechamento do Congresso.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

Hora de escutar

Vejo as fotos da Itália, tomada (como o mundo) pelo pânico gerado pelo coronavírus, com seus monumentos e praças desertos, e me vem à cabeça uma expressão da língua italiana que adoro, e que parece ganhar nova relevância nestes tempos estranhos.
No Brasil é comum, ao nos despedirmos de alguém, dizer “nos vemos”. Em outras línguas há expressões semelhantes, ligadas à ideia de um novo encontro, quando as pessoas se reverão (“see you”, “au revoir”), e outras que remetem a uma nova conversa (“nos falamos”).
Mas na Itália, entre várias formas de saudação —incluindo o interessante “ciao”, que tanto é “olá” quanto “até logo”—, é comum também, na despedida, que se diga “ci sentiamo”. Nos escutamos.
Sempre achei fantástico que as pessoas, no lugar de dizer que irão falar uma para outra, digam que vão escutar a outra. Uma bela diferença: o próximo encontro será para ouvir o interlocutor, não necessariamente para fazê-lo ouvir o que queremos dizer. Uma bonita deferência, ainda que só retórica.
A expressão se adapta muito bem a qualquer tipo de compromisso futuro. Até breve? “Ci sentiamo presto”. Até amanhã? “Ci sentiamo domani”. E por aí vai.
Não é a única forma de se despedir por ali. Mas é muito habitual, até onde percebi em minhas viagens pela Itália. E por que ela me vem à mente agora, com nova relevância?
É que neste momento está impossível viajar para encontrar pessoalmente um amigo italiano, ou de qualquer outra nacionalidade. Usando a tecnologia será mais fácil falar com as pessoas.
Mas, num momento de consternação, e em especial na Itália, que entre todos os países é aquele que vive situação mais dramática, temos mesmo que “falar” com eles? Ou não será, antes de tudo, momento de escutar?
A situação desta pandemia coloca para todos o desafio de manter-se em comunidade, apesar do isolamento físico. De manter as relações, que podem e devem ser repensadas, em reação a um mundo onde a comunicação é tão instantânea, mas na prática é tão usada para fabricar bolhas (não laços) e jorrar narcisismos (não semelhanças).
Lembrei-me da Itália também porque, nesta semana, escutava uma sinfonia de Gustav Mahler, a quinta, quando comecei a ler sobre a desesperadora progressão das mortes pela Covid-19 no país. Junto com a matéria, via fotos da desolação sepulcral da praça São Marcos, em Veneza.
Acontece que esta peça musical se tornou indissociável da cidade, desde o lançamento do filme “Morte em Veneza” (1971), de Luchino Visconti.
O diretor italiano levou às telas o romance homônimo do alemão Thomas Mann, lançado em 1912. Livro e filme falam de um dos lugares urbanos mais belos do mundo (e é sobre as glórias e infortúnios da beleza, a obra), e estranhamente têm uma conexão com os dias de hoje: a história se passa naquele cenário maravilhoso, mas assolado por uma epidemia de cólera.
No filme, o famoso adaggieto (o quarto movimento) da sinfonia embala os momentos em que o personagem vivido por Dirk Bogarde sucumbe mortalmente à beleza proibida de um jovem mal entrado na adolescência, cuja simples presença arrebatadora (somada à angústia de uma crise criativa) o levara a negligenciar os cuidados diante da doença que os espreitava.
Naquele momento de delírio final, o cenário não são as ruas tomadas por fogueiras e desespero produzidos pela peste; é a praia do Lido de Veneza, a estreita tripa de areia que limita a laguna, com as espreguiçadeiras do Hotel des Bains dispostas diante do mar, que emoldura a silhueta do jovem.
Mas o jornal também me mostrou algo que escancara a tensão entre a dor e a beleza exposta no filme, e agora na vida. São as imagens dos canais de Veneza, plácidos e límpidos, com peixinhos que se avistam em suas águas transparentes. Uma beleza redescoberta por detrás de uma cidade excessivamente ocupada por um turismo predador.
Mais uma coisa a ser repensada quando acabar este pesadelo. E as pessoas, impactadas pela tragédia, passarem a se escutar mais, quem sabe.

Texto de Josimar Melo, na Folha de São Paulo

domingo, 22 de março de 2020

Agora almoçar

Quanto tempo teremos?
Melhor esquecer o relógio
Melhor almoçar enquanto podemos

Por Bárbara Sanco 

22/03/2020.

Quarentena em Porto Alegre

Queria folga da humanidade
Um anjo disse amém
Meu pedido virou realidade

Por Bárbara Sanco 

22/03/2020.

Quarentena em POA

Em livros e filmes esqueço
Entre histórias de outros
Do mundo doente me perco

Por Bárbara Sanco

22/03/2020.

Quarentena na Praia

Entre meus dedos areia
No corpo sol e silêncio
E do mundo fico alheia

Por Bárbara Sanco

22/03/2020

Agora almoçar

Manter a rotina
Entre o dormir
E o acordar

Por Ana Mello

22/03/2020.

Quarentena em POA

A janela é o limite
Antes privacidade
Agora desejo de liberdade

por Ana Mello

22/03/2020.

Quarentena na Praia

Vento soprando recados
Sol, praia e mar
Desocupados

por Mário Roberto Ulbrich

22/03/2020.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Você era infeliz e não sabia

Os motivos pelos quais você deve se isolar estão expostos gritante e repetidamente na imprensa, nos grupos de WhatsApp e nas redes sociais.
Sim, você tem que se proteger, proteger sua família, seus funcionários, os idosos, os imunodeprimidos e, sobretudo, não engrossar o coro dos idiotas que vão colapsar o SUS.
Dito isso, agora me sinto na obrigação de te avisar de outra coisa: nesses dias de confinamento, não se assuste ao descobrir o quanto você pode ser infeliz. Calma, amigo, todos podemos.
Se você achava a maternidade o suprassumo da alegria, o ápice da sua vida, vai entender que só funciona assim porque você sai de casa algumas (muitas?) horas por dia.
Se você achava o seu casamento até que razoável “perto de tudo que tem por aí”, vai começar a fazer contas pra ver se rola se separar ainda nesse mês.
Se você achava o seu cantinho das plantas “um momentinho delícia”, vai finalmente entender que você vive como um rato, numa casa entulhada de merda, numa cidade irrespirável. Suas plantas só te enganavam porque você saía cedo, atrasado, e voltava tarde, cansado.
Meu amigo, a vida é chata pacarai. É isso. E lá no fundinho da alma você sempre soube, mas estava puto demais com o trânsito e as encrencas da firma pra perceber.
Estou dizendo isso porque sou solidária e porque já trabalho em home office há mais de dez anos (dividindo o escritório com meu marido há cerca de três). Então sou experiente em querer largar tudo e
sair correndo. E posso afirmar: essa vontade não passa.
Tem gente com doença grave, desempregada, em luto, criando três filhos sem ajuda de ninguém. A essas pessoas, peço perdão pela crônica leviana.
Mas para mim, e provavelmente para você, os dias de quarentena mostrarão apenas o quanto somos mal-agradecidos e o quanto o escapismo é o que mantém em nós algum entusiasmo.
Claro que amo a minha filha e amo o meu marido (amo bem mais a minha filha) e curto bastante o meu cantinho das plantas. Mas amar não significa se sentir plenamente animada. E eu só sou feliz porque tenho reunião. Desculpe, mas é verdade.
Eu só fico contente nas férias porque estou pensando em todos os trabalhos que vou poder fazer quando voltar mais descansada. Eu só me senti menos louca amamentando porque eu deixava um bloquinho ao lado, pra anotar ideias.
Eu sinto imenso prazer ao brincar com a minha filha porque nas oito horas que antecederam aquele momento eu realizei tarefas, estudei, li, aprovei projetos, recebi elogios profissionais, paguei as minhas contas.
Agora, com meus cursos paralisados, meus empregos que dependem de encontros presenciais também paralisados, ainda me resta escrever. Ou seja: eu tenho pra onde correr. Seria bom que você tivesse também, amigo.
Calma! Antes de dizer ao seu mozão o quanto você o odeia, antes de traumatizar seu filho adolescente com a frase “que merda eu fiz com a minha vida” e antes de enlouquecer e sair quebrando seus vasinhos ridículos de suculentas, respire e repita comigo: a vida é chata pra todo mundo.
A minha vida é um porre. A vida do seu vizinho é insuportável. A gente só estava em reunião, no ar-condicionado, desejando tão loucamente voltar logo pra essa casa apertada e pra essa vida “igualzinha à dos outros e igualzinha à de ontem” que não percebia.
Você queria mais, eu sei. Ah, como era bom ser sozinho e planejar e namorar e viajar sem dia e hora pra voltar. Era bom? Mesmo? Era nada. Era um saco também. Era uma solidão da porra. A gente só não percebia porque estava em reunião. Em suma: fique em casa e lave as mãos.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Combate ao coronavírus sela cooperação entre israelenses e palestinos

Uma trégua improvável está sendo selada entre israelenses e palestinos, que estão colaborando para evitar o aumento da contaminação pelo coronavírus na Terra Santa.
Nas últimas três semanas, representantes dos dois lados têm se encontrado para coordenar medidas em um escritório de monitoramento conjunto —cujo endereço é mantido em segredo.
“A saúde de todos os cidadãos da região está acima de tudo, e é nossa principal prioridade. Continuaremos a agir em colaboração com a Autoridade Palestina em um esforço conjunto", diz o major Yotam Shefer, chefe do departamento internacional da administração civil israelense na Cisjordânia.
Israel anunciou que enviará 20 toneladas de desinfetante para a Cisjordânia, além de 400 kits para realização de testes de detecção do coronavírus, além de outros 500 kits de equipamentos de proteção para as equipes médicas e as forças de segurança palestinas.
Há workshops conjuntos entre as equipes médicas dos dois lados. Também está sendo montado um hospital de campanha na fronteira com a Faixa de Gaza.
A mais recente medida foi o anúncio da permissão para que 70 mil trabalhadores palestinos cruzem a fronteira com Israel para manter seus empregos no país. A maioria trabalha em setores como construção civil, agricultura, indústria e serviços.
O número permitido durante a pandemia é um pouco menor do que o normal —100 mil palestinos costumam trabalhar diariamente em Israel. Mas a crise econômica causada pelo vírus já diminuiu os postos de trabalho.
A rotina também será diferente, porque esses trabalhadores palestinos não poderão voltar para casa no fim do dia —a fronteira com a Palestina será fechada nesta quinta-feira (19), com exceção da passagem de doentes e equipes médicas.
Os palestinos terão que ficar direto em Israel por um ou dois meses e deverão ser hospedados pelos empregadores israelenses em residências temporárias.
Caso haja suspeita de contaminação pelo coronavírus, os empregadores precisam dar condições para que o trabalhador fique em quarentena por 14 dias. Se algum palestino adoecer e precisar ser hospitalizado, será atendido em hospitais locais.
A medida tem como objetivo manter a economia israelense parcialmente em funcionamento para evitar uma crise mais profunda. As autoridades afirmam acreditar que 400 mil pessoas já perderam ou vão perder o emprego nas próximas semanas.
Israel contabiliza, até esta quarta-feira (18), cerca de 500 casos de contaminação, cinco dos quais de pacientes em estado grave. Não houve nenhuma morte atribuída à Covid-19 até o momento.
Para tentar conter a disseminação do vírus, o governo proibiu reuniões com mais de dez pessoas e ordenou a manutenção de apenas 30% da força de trabalho em repartições públicas e empresas privadas.
Lojas, com exceção de supermercados e farmácias, e todo o setor de entretenimento estão fechados.
O anúncio mais polêmico, no entanto, foi o da utilização de tecnologia avançada para rastrear os telefones celulares de pacientes com coronavírus e indivíduos suspeitos de estarem infectados.
Até hoje, o sistema era usado apenas pelo Serviço de Segurança (Shin Bet).
O major Shefer elogiou os esforços dos palestinos para contar a epidemia na região. “Eles estão levando tudo a sério”, afirmou, apontando medidas como a proibição das rezas em mesquitas e igrejas.
Os “muezim” (encarregados de anunciar em voz alta, do alto dos minaretes, o momento das preces) têm repetido as palavras “rezem em casa, rezem em casa”. O vaivém de pessoas diminuiu drasticamente nas cidades palestinas, que mantêm apenas serviços básicos abertos.
O presidente de Israel, Reuven Rivlin telefonou nesta quarta para o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, para falar sobre os efeitos do coronavírus na região.
"O mundo está lidando com uma crise que não distingue pessoas ou endereços. Nossa capacidade de trabalhar juntos em tempos de crise também é prova de nossa capacidade de trabalhar juntos no futuro para o bem de todos nós", disse Rivlin. Abbas agradeceu a coordenação de esforços.
Até esta quarta-feira (18), o Ministério da Saúde palestino havia registrado 44 doentes com Covid-19, a maioria (40) em Belém. A cidade foi colocada em quarentena e está fechada para turistas, assim como a Igreja da Natividade.
Israelenses e palestinos colaboraram para retirar mil estrangeiros da cidade.
Três infectados com coronavírus são palestinos que voltaram do exterior pela ponte Allenby, na fronteira entre a Cisjordânia e a Jordânia. E há um caso de um trabalhador palestino de construção civil que teria sido contaminado pelo contato com um empreiteiro israelense.
A liderança do grupo islâmico Hamas, que controla a Faixa de Gaza, proibiu a entrada ou saída no enclave, fechando a fronteira com o Egito.
Na Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém, onde fica a sagrada mesquita de Al-Aqsa), as orações ainda são realizadas. Mas líderes religiosos da Jordânia —que têm autoridade sobre a esplanada, apesar de ela ficar em Jerusalém— emitiram diversas orientações para que os fieis não fiquem próximos uns dos outros e rezem do lado de fora da mesquita, que tem sido constantemente esterilizada.
Segundo uma pesquisa do Instituto Truman para Paz da Universidade Hebraica de Jerusalém, 63% dos israelenses afirmam que Israel deve ajudar os palestinos durante a crise do coronavírus.
“A maioria dos israelenses acredita que, quando houver necessidade, o governo deve traçar medidas preventivas para ajudar os palestinos durante a epidemia da Covid-19”, disse Vered Vinitsky-Serousse, presidente do Instituto.

Reprodução da Folha de São Paulo.

Reviravolta

“Uma história não está terminada até que algo tenha dado extremamente errado.” O ensinamento é do escritor policial suíço Friedrich Dürrenmatt e se refere às histórias inventadas, mas tem a mania de valer para histórias reais também.
Se Dürrenmatt estiver certo, o mundo já pode acabar, porque algo deu extremamente errado: uma pandemia das grandes, uma peste como as que no passado dizimavam populações inteiras.
A História (ela mesma, com inicial maiúscula e tudo) vinha assim: um populismo de direita de cepa virulenta, baseado em ignorância, individualismo e ódio, parecia confortável no poder em vários países, caminhando para reeleições tranquilas.
De repente, um inimigo invisível e mortal deixou o mundo mais dependente do que nunca de ciência, pesquisa, responsabilidade, solidariedade, amparo estatal, informação, jornalismo.
Pois é: tudo aquilo que há anos é tratado a pontapés pelos líderes da Grande Onda Boçal (GOB), como este momento embaraçoso da humanidade poderá, quem sabe, ser batizado por um historiador do futuro.
Com um presidente que já carregava um fraldão pesado de problemas antes de, diante da crise sanitária, comprovar com nitidez inédita ser um inepto e um estorvo, o Brasil foi apanhado em posição especialmente vulnerável.
Uns chamam esse tipo de acidente narrativo de reviravolta, outros de guinada, outros ainda de plot twist (muita gente já desistiu de traduzir o mundo para nossa língua).
Ricardo Piglia, escritor e crítico argentino, tem um livro precioso, “Formas Breves”, no qual desenha uma teoria do conto como narrativa que conta duas histórias, a 1 e a 2.
A história 1 é explícita, exterior, evidente. A história 2 é cifrada, elíptica, oculta em maior ou menor grau conforme as intenções do autor. A certa altura, em geral perto do fim, a história 2 deve emergir na consciência do leitor.
O que parece uma fórmula de conto policial é, segundo Piglia, o modelo de qualquer conto digno deste nome.
Minha única crítica é que ele restrinja ao conto o que pode ser dito da arte narrativa em geral.
Quando a história subterrânea aflora no texto, o que se revela é nada menos que o sentido. Sabe-se que da literatura exigimos que faça sentido, algo que a realidade ignora com solenidade.
Mesmo desprezando a obrigação de fazer sentido, porém, a realidade não pode fugir de certos parâmetros.
Alguém já disse que a menos realista das literaturas ainda é realista.
Na hora daquilo que um trocadilhista mais corajoso poderia chamar de re-vírus-volta, quando descobrimos a morte pairando sobre nossas cabeças, quem é apanhado colaborando com ela, a morte, costuma se dar mal.
No mínimo, é para isso que o leitor torce.

*
Mencionei na semana passada o mau humor de Jorge Luis Borges com a etimologia. Alguns leitores protestaram, observando que o argentino (o segundo desta coluna, ora veja) era um cultor da história das palavras. O que também é verdade.
Mais do que curtir etimologia, Borges foi o escritor-filólogo por excelência. E ainda assim deixou numerosas referências desairosas a esse saber em artigos e ensaios: inútil, decorativo,
passatempo de intelectuais.
Contradição do sujeito? Ironia sobre ironia? Coisas de Borges, um dos gigantes. Eu diria que malhar a etimologia é sua história 1, enquanto a 2 fala de seu profundo amor pelas palavras.

Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo

terça-feira, 17 de março de 2020

A leitura em tempos de coronavírus

Você conhece o "Decameron", de Giovanni Boccaccio, que está na origem do conto como gênero literário. No flagelo da peste bubônica na Florença de 1348, dez nobres, durante dez dias, se confinam e decidem contar histórias. Na Itália de hoje, país europeu mais atingido pela pandemia de coronavírus, a situação se repete. Uma espécie de efeito colateral que bate nas pessoas obrigadas a ficar em casa: a leitura. As vendas online de dois romances "A Peste", de Albert Camus, e "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago"“ dispararam.

O de Camus é uma peça de resistência: a cidade de Oran, infestada de ratos, se transforma em alegoria da Europa ocupada pelo nazismo. O de Saramago é um thriller de terror: a epidemia de cegueira branca mostra a que ponto se pode chegar diante de uma situação de caos. Invadir supermercados para esvaziar prateleiras com papel higiênico e álcool gel é só o início.
Há outras indicações na literatura, a competir com a maratona de séries e flash mobs sonoros. Num conto de Edgar Allan Poe, "A Máscara da Morte Vermelha", o príncipe Próspero despreza as alusões à peste negra e resolve dar uma festança, trancando mil amigos num castelo e deixando a miséria lá fora.
Qualquer semelhança com o Brasil atual é mera coincidência.
O tema era caro a Gabriel García Márquez: em "Cem Anos de Solidão", a peste da insônia contamina os habitantes de Macondo; o título "O Amor Nos Tempos do Cólera" dispensa explicações. Nas duas obras, revela-se a admiração do autor por "Um Diário do Ano da Peste", de Daniel Defoe. Há quase 300 anos este livro é um modelo, não só para abordagens sobre epidemias como também do registro de informações jornalísticas utilizando-se da narrativa ficcional. Suposto relato de uma testemunha ocular, a ação se passa no verão londrino de 1665, quando o autor tinha quatro anos de idade.
Lave as mãos depois da leitura.

Texto de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo

O amor nos tempos de Covid-19

A despensa ainda estava cheia quando o estoque de paciência se esgotou. Fadados à companhia um do outro, o casal não conseguia nem sequer escolher um filme na Netflix ou uma playlist do Spotify sem discutir. Acabaram optando pelo divórcio.
Agora, se sentiam confinados em um reality que poderia se chamar “De Quarentena com o Ex”. Como o sexo é parte fundamental desse tipo de programa, logo tiveram uma recaída, e ela acabou engravidando. O filho do ex-casal seria só mais um dentre tantos bebês da geração “coronnial”, concebidos durante a quarentena.
Já Mathias e João estavam mais unidos do que nunca, e pela mesma causa. Passavam a maior parte do tempo tuitando do sofá da sala, parcialmente destruído por seu cachorro entediado. O casal encontrou outra maneira de driblar o tédio e lançou a campanha de cancelamento do ano. A hashtag #2020cancelado não demorou a chegar aos “trending topics”. Infelizmente, o ativismo de sofá não surtiu efeito, e 2020 seguiu seus dias, imune às críticas. Os pais de pet se deram conta de que valia mais a pena gastar suas energias jogando a bolinha para o cachorro.
Suzana chegou em casa e pôde enfim tirar a máscara, pensando nos olhares que recebeu no trem lotado.
Não sabia se eram de cobiça por seu item de luxo ou por receio de ela estar doente. A verdade é que aquele moço de camisa listrada que também desceu em Oswaldo Cruz estava flertando com ela. Suzana estava cansada demais para perceber isso, depois de fazer uma faxina redobrada na casa de sua patroa, que estava de quarentena. Eles acabariam se reencontrando dias depois, na fila de um posto de saúde, e descobrindo o tanto de coisas que tinham em comum.
Sentiu dores no polegar direito, mas era só uma tendinite causada pelo uso excessivo do Tinder. O aplicativo estava bombando como nunca, mas ninguém queria pegar ninguém. Larissa tentou atrair seus matches com nudes, mas o que eles queriam ver mesmo era um atestado médico. Mesmo disparando emojis de foguinho em massa, a única coisa que esquentou foi sua temperatura corporal.
Não tinha o hábito de limpar o celular quando chegava em casa, abrigando uma orgia virótica embaixo de seu nariz. Foi o coronavírus que a acabou levando para a cama.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.

Top 10 livros para a quarentena

Já que estamos em casa, confinados na luta contra a disseminação do coronavírus (e, portanto, com mais tempo para ler), decidi relacionar alguns dos meus livros preferidos (dentro do perfil da coluna, ou seja: obras com cerca de 200 páginas cada) no lugar da resenha da semana.
Penso que “Afetos Ferozes”, de Vivian Gornick, possa encabeçar essa seleção. É a história de uma filha que perambula por Manhattan com a sua mãe, já idosa, tentando estabelecer com ela uma relação, quase impossível, de proximidade e carinho.
Escolhi esse título porque não vai ser fácil o confinamento com a família sem que fiquemos um tanto felinos, e também para que possamos matar as saudades, por ora, de andar pelas ruas. Esse livro, preciso dizer, é muito mais do que isso, mas a pretensão dessa lista quase temática é despretensiosa.
“Pouco Amor Não É Amor”, do Nelson Rodrigues, é um livro de contos espetacular. Lá você vai encontrar o caldo precioso do autor: muita ironia, muito exagero e muita gente que vive de pose sendo desnudada sem dó.
Mas esse título não está aqui à toa. Ele também tem tudo a ver com nosso confinamento. Não fosse SUA essa criança, enlouquecendo na sala, sem a escola para te salvar, teria você tamanha paciência? Não fosse SEU esse marido-mala-sem-alça, reclamando o dia todo na sua orelha, teria você tamanho saco? Enfim, só com muito amor! Força, guerreiros!
“Isso Também Vai Passar”, além de ser uma frase boa de pensar e de se dizer em tempos de coronavírus, ainda dá título ao livro mais elogiado da catalã Milena Busquets. Blanca, a protagonista, é, ao mesmo tempo, tão sincera, perdida e divertida, que você mergulha em seu luto (pesadíssimo) e em suas férias bastante sexuais e ensolaradas.
“Do que É Feita a Maçã”, de Amós Oz, é a dica perfeita para você não se sentir, durante o período de isolamento, longe de bons interlocutores. Na saudade de tomar um café com seu amigo mais genial, leia a conversa do brilhante autor com uma amiga a respeito de tudo o que lhe inspira, lhe causa culpa e ainda sobre o amor, a paternidade e seus hábitos de escrita.
“Coisa de Menina?” dos psicanalistas Maria Homem e Contardo Calligaris é outra conversa aberta e honesta da qual você pode participar trancado em casa e ainda “sair” bem informado sobre as discussões de gênero e o feminismo.
“O Lobo da Estepe”, de Hermann Hesse, mostra um tipo diferente de você, que está aí achando o isolamento terrível. Esse cara adorava. Bem, ele quase se mata por isso mas, assim como você, pode acabar sendo salvo pelo amor (ou pela Netflix, mas eu não escrevi isso pois esta é uma coluna de livros).
“O Conceito da Angústia”, de Kierkegaard. Olha, você pode tratar a ansiedade e a bola de pelo na garganta com grupos de WhatsApp e tarja preta. Mas, conselho meu, o primeiro só vai piorar tudo e o segundo vai te deixar sem memória. Melhor entender de uma vez do que se trata essa vertigem de liberdade (mesmo em tempos de quarentena) e depois você ainda pode dizer que leu pelo menos um livro cabeça na vida.
Formas de Voltar Para Casa”, de Alejandro Zambra. Eu sei que o que você quer é SAIR de casa, mas essa dica é somente para reforçar que a ditadura é um absurdo e que o Zambra é um dos maiores escritores vivos.
“Dias de Abandono”, da Elena Ferrante, vai te lembrar que Olga, depois de 15 anos de casamento, foi simplesmente largada pelo desgraçado do Mario. Você, com tudo que a vida em família tem de chata, pelo menos não está aí sozinho. Ou, se estiver, vai segurar nas mãos dessa protagonista enquanto dias melhores não chegam. Ou ainda: comemore e abrace essa solidão, confesso que tenho certa saudade.
“Quando os Pais se Separam”, da psicanalista Françoise Dolto, é uma boa dica para o final do confinamento. Mas, se tudo der certo, você não vai precisar. Esqueça esse por enquanto.

Reprodução da Folha de São Paulo

terça-feira, 10 de março de 2020

Carta aberta de um clitóris sensível

Escrevo esta carta à meia-luz, sob a renda de uma calcinha de poliéster. Uma calcinha bonitinha, mas ordinária, que costuma incomodar minhas vizinhas, conhecidas popularmente como vulva e vagina.
“Popularmente” talvez seja uma palavra muito forte. A vulva, apesar de extrovertida, é frequentemente confundida com a vagina, e isso as deixa mais irritadas do que qualquer calcinha de poliéster. Melhor abafar o caso.
Não venho por meio desta reclamar da minha vizinhança. Sempre nos resolvemos muito bem internamente. Gosto daqui, apesar de ser uma região um tanto desvalorizada e do IPTU ser caríssimo. Isso sem contar o controle excessivo exercido pelas autoridades. O útero que o diga.
Me desculpem se ainda não me apresentei. Alguns me chamam de botão, binguelo, pito, periquito, grelo, Cleiton, Clinton, Clint Eastwood...
Prazer, clitóris. O duplo sentido não foi intencional. Escrever não é exatamente a minha função. Sentir prazer, sim.
Usando esses termos, posso até parecer hedonista, mas se engana quem pensa que produzir orgasmos femininos é uma tarefa fácil. Séculos se passaram até meu trabalho ser reconhecido. Vivi nas sombras por muito tempo, solenemente ignorado por cientistas e por grande parte da população masculina.
Minha anatomia completa, duas vezes maior do que se imaginava até então, foi descoberta apenas no final da década de 1990. A primeira vez que passei por uma ressonância computadorizada enquanto estava estimulado foi em 2009 —esse dia foi bem louco—, quando descobriram que todo orgasmo é clitoriano, desmontando enfim a farsa do orgasmo vaginal. Que fique claro que a vagina nunca quis 
usurpar os meus créditos, então isso foi um grande alívio para ambos.
Hoje, ainda vigora a crença popular de que os homens não conseguem me encontrar. Isso é mito. Os homens sabem muito bem onde estou, só me ignoram por livre e espontânea vontade e seguem em frente com seus objetivos, com a mesma frieza de quem dribla um voluntário da Unicef na rua e acelera o passo.
Por isso, fica aqui o apelo aos rapazes. Por que tamanho desprezo? Posso ter uma glande menor que a de vocês, mas sou muito mais sensível: tenho o dobro de terminações nervosas do que o pênis e minha Lua é em Peixes. Saiba que não guardo rancor e tenho certeza que podemos ser grandes amigos. Tire suas dúvidas com minha proprietária, agende uma visita.
E se você que está me lendo é mulher e sabe usufruir da minha companhia, saiba que você é privilegiada sim. Pelo menos nesse aspecto.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

domingo, 8 de março de 2020

'A Vida Oculta' discute o sentido dos pequenos atos dentro e fora da história

“Middlemarch”, o romance que George Eliot publicou em 1872, relata incontáveis casos da vida inglesa na província. No desenlace do livro, ela resume o destino de um punhado de seus personagens. Contrapõe a vida sonhada à que de fato ocorreu.
A última pessoa de quem a grande escritora vitoriana fala é Dorothea. Audaz, arguta, criativa, ela parecia talhada para grandes feitos, para o heroísmo. Dois casamentos medíocres, e outras duras desilusões, fazem com que sua vontade de melhorar o mundo se frustre.
Mas George Eliot observa que, se Dorothea não teve impacto sobre a ordem geral da vida, o efeito de seus atos sobre as pessoas a seu redor “foi incalculavelmente difusivo”. E então fecha “Middlemarch” com uma bem lustrada chave de ouro: “O bem crescente do mundo depende parcialmente de atos a-históricos; e se as coisas não vão tão mal para você e para mim como poderiam, isso se deve em parte ao número dos que viveram fielmente uma vida oculta, e jazem em túmulos não visitados”.
A mesma frase aparece ao final das três horas de “Uma Vida Oculta”, de Terrence Malick. Ela não explica apenas de onde foi tirado o título do filme. Também o tema das duas obras é o mesmo: o sentido dos atos de gente anônima —estejam dentro ou fora da história.
São ações corriqueiras de mulheres e homens banais. 
Lavram a terra, amam, cuidam dos filhos, conversam com vizinhos, festejam, rezam. Ao contrário de Dorothea, o protagonista do filme, Franz Jägerstätter, não tem maiores ambições, sente-se bem dentro de suas botas.
Temente a Deus, vive para a mulher, as três filhas e a mãe num vilarejo da província austríaca de Radegund. Mas eis que os nazistas invadem e anexam o país, sendo aplaudidos pelo povo. A expansão fascista se acelera. Escuta-se ao longe o ronco de aviões militares. 
A guerra começa.
Todo austríaco que for convocado para a luta tem que jurar fidelidade ao Führer. De bicicleta, o carteiro passa uma, duas, três vezes pela fazendinha de Franz. Ele olha apreensivo para a mulher, Franziska: é contra a guerra, nunca que jurará lealdade a Hitler.
“Uma Vida Oculta” é uma longa ruminação acerca dos dilemas de Franz. Fazer o que acredita ou proteger os que ama? Ceder e seguir em frente, ou fazer um sacrifício inócuo? Jurar em falso ou afirmar a verdade? Resistir ao mal é fortaleza ou vaidade? O mal está dentro ou fora de nós?
O filme é feito de indagações, música e imagens grandiosas. Há poucos diálogos, muitos sem legenda ou mesmo som. A angústia é mostrada por meio das cartas de Franz e Franziska. De paisagens intoleravelmente lindas. Dos rostos coléricos que agridem o casal.
Radegund inteira desconfia deles. Os que querem ajudá-los, os espectadores, todos desconfiam. Por que não se conformam? Por que querem ser diferentes? Acham-se superiores? Ecoa no filme a pergunta de “Middlemarch”: “Qual solidão é mais solitária que a desconfiança?”.
As pessoas sensatas —autoridades eclesiásticas, jurídicas e militares— dizem a Franz que, como ninguém verá a sua negativa, ela é absurda. Mas aquele homem comum é incomum: tem crenças e nelas persevera.
Como Franz é um católico fervoroso, que procura até um bispo em busca de orientação, a sua resistência ao nazismo é bem mais moral que política. Sua teimosia tem um quê de fanatismo. Está fora da história porque diz respeito a algo maior, inefável —irreal.
Malick e George Eliot fazem com que Franz e Dorothea cheguem por caminhos opostos ao sacrifício. A inglesa renuncia a seu destino heroico para fazer o bem a poucos. O austríaco desiste da comunhão entre os homens para afirmar sua fé.
A romancista acredita na santidade. No início de “Middlemarch”, ela aproxima Dorothea de Santa Teresa d’Ávila, a mística espanhola do século 16 que se sacrificou pelas pessoas pobres e próximas.
No fim do romance, ela escreve que, como situações históricas são irreproduzíveis, as novas Teresas —assim como as novas Antígonas— terão de buscar outras saídas. Caso de Dorothea, cuja humilde santidade é renunciar à glória da santidade triunfante.
É um destino oposto ao de Franz Jägerstätter, que vai da humildade à glória. Na vida real, ele foi desencorajado e até hostilizado pela hierarquia católica, que se compôs com o nazismo.
Em 2007, porém, sua vida oculta tornou-se história. Foi declarado mártir e beatificado pelo papa Bento 16 —talvez não por acaso um adolescente alemão que foi obrigado a se alistar na Juventude Hitlerista.

Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo