O moto da Revolução Francesa propõe um conflito moral que a gente não resolveu até hoje.
Por convenção, considera-se que a Revolução Francesa tenha inventado a modernidade. Na verdade, a Revolução Americana foi mais radical (inventou o governo republicano) e menos catastrófica (à diferença da francesa, não produziu nenhuma época de terror, em que se cortaram cabeças como trigo, nem um ditador como Napoleão).
Em qualquer época sombria, aliás, é bom ler e reler Gertrude Himmelfarb, uma dos 200 autores que é bom frequentar para morrer de pé —por exemplo, “Os Caminhos para a Modernidade: Iluminismos Britânico, Francês e Americano” (ed. É Realizações).
A modernidade na qual quero viver é mais filha da Revolução Americana do que da francesa. Mas, de qualquer forma, a modernidade nunca escapa do conflito que está posto sinteticamente naquele “liberdade, igualdade, fraternidade”. Que conflito?
Simples: a igualdade e a fraternidade resultam em algum limite imposto à minha liberdade individual. Eu vou ser livre para me desenvolver como eu quiser e tudo o que eu puder, mas (cuidado!) sem ficar muito diferente de meus vizinhos. Cadê minha liberdade então?
Claro, surgem e se impõem assim uma série de distinções. De que igualdade se trata? Igualdade de oportunidades iniciais? Igualdade perante a lei? Igualdade de direitos políticos efetivos? Ou igualdade na chegada —sei lá, salário único e solidário, igual para todos?
Mais de 200 anos depois das revoluções do fim do século 18, o conflito moderno continua irresolvido. E, cada vez mais, esse conflito interno e central de nossa cultura é vivido como se fosse um conflito contra um inimigo externo. E é uma pena: se reconhecêssemos que as posições que se enfrentam estão todas, em alguma medida, dentro de nós, certamente conseguiríamos dialogar melhor.
Armamos dois campos, nenhum dos quais gosta de admitir que o campo oposto não lhe é estrangeiro.
Dizem assim: à esquerda, os que querem igualdade e fraternidade, e, à direita, os que querem liberdade.
É quase engraçado que essa oposição pareça ser entre classes, como se os donos do dinheiro, das terras e das fábricas defendessem o “luxo” de sua liberdade, e os descamisados pedissem apenas igualdade e solidariedade, sem se preocupar com sua liberdade individual.
De fato, não há nem sequer dois anseios opostos, mas um conflito, que faz parte da definição da cultura moderna e que está em cada um de nós. Perfeitos idiotas à parte, ninguém quer liberdade sem solidariedade, e ninguém quer solidariedade sem liberdade.
Jack London é um grande romancista desse conflito. Li “Caninos Brancos” e “O Chamado da Floresta” (“O Chamado Selvagem”, que seja) —há uma nova versão cinematográfica em cartaz— em edições infantojuvenis, aos dez anos.
Mais tarde, li “Martin Eden” (publicado em 1909), que é a história de um marinheiro pobre que decide se tornar escritor, se joga nos livros, ama (mais ou menos correspondido) uma jovem rica e, ao alcançar o sucesso, descobre que ele não tem mais turma alguma. Assim como o bicho chamado “caninos brancos” não é nem lobo nem cachorro e é estranhado pelas duas espécies, Martin Eden, aos olhos das elites, é um perigoso “socialista”, enquanto, para os socialistas, ele é um traíra, que preza a liberdade individual.
Está em cartaz “Martin Eden”, filme de Pietro Marcello (prêmio de melhor ator para Luca Marinelli, o protagonista, no Festival de Veneza de 2019). A história do jovem marinheiro mantém a filosofia de Herbert Spencer, que hoje poucos leem, como inspiração para o protagonista. Enfim, como no livro, para os socialistas, Eden é um perigoso individualista libertário e, para os liberais, ele é um perigoso socialista.
A um burguês que o acusa de socialista, Eden responde que o socialismo é uma tribulação interna do próprio pensamento da burguesia. Aos socialistas que sonham com a revolução, Eden profetiza que eles encontrarão novos patrões, talvez piores (nisso, Jack London antecipa uma alocução do psicanalista, seu xará, Lacan, aos revoltados de Maio de 1968: como revolucionários, vocês procuram um mestre).
Martin Eden encarna o conflito talvez mais fecundo e profundo do ideário moderno. Ele pode ser solidário com os desfavorecidos, mas não há nada de sua liberdade individual que ele possa sacrificar a um ideal coletivo.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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