“Uma história não está terminada até que algo tenha dado extremamente errado.” O ensinamento é do escritor policial suíço Friedrich Dürrenmatt e se refere às histórias inventadas, mas tem a mania de valer para histórias reais também.
Se Dürrenmatt estiver certo, o mundo já pode acabar, porque algo deu extremamente errado: uma pandemia das grandes, uma peste como as que no passado dizimavam populações inteiras.
A História (ela mesma, com inicial maiúscula e tudo) vinha assim: um populismo de direita de cepa virulenta, baseado em ignorância, individualismo e ódio, parecia confortável no poder em vários países, caminhando para reeleições tranquilas.
De repente, um inimigo invisível e mortal deixou o mundo mais dependente do que nunca de ciência, pesquisa, responsabilidade, solidariedade, amparo estatal, informação, jornalismo.
Pois é: tudo aquilo que há anos é tratado a pontapés pelos líderes da Grande Onda Boçal (GOB), como este momento embaraçoso da humanidade poderá, quem sabe, ser batizado por um historiador do futuro.
Com um presidente que já carregava um fraldão pesado de problemas antes de, diante da crise sanitária, comprovar com nitidez inédita ser um inepto e um estorvo, o Brasil foi apanhado em posição especialmente vulnerável.
Uns chamam esse tipo de acidente narrativo de reviravolta, outros de guinada, outros ainda de plot twist (muita gente já desistiu de traduzir o mundo para nossa língua).
Ricardo Piglia, escritor e crítico argentino, tem um livro precioso, “Formas Breves”, no qual desenha uma teoria do conto como narrativa que conta duas histórias, a 1 e a 2.
A história 1 é explícita, exterior, evidente. A história 2 é cifrada, elíptica, oculta em maior ou menor grau conforme as intenções do autor. A certa altura, em geral perto do fim, a história 2 deve emergir na consciência do leitor.
O que parece uma fórmula de conto policial é, segundo Piglia, o modelo de qualquer conto digno deste nome.
Minha única crítica é que ele restrinja ao conto o que pode ser dito da arte narrativa em geral.
Quando a história subterrânea aflora no texto, o que se revela é nada menos que o sentido. Sabe-se que da literatura exigimos que faça sentido, algo que a realidade ignora com solenidade.
Mesmo desprezando a obrigação de fazer sentido, porém, a realidade não pode fugir de certos parâmetros.
Alguém já disse que a menos realista das literaturas ainda é realista.
Na hora daquilo que um trocadilhista mais corajoso poderia chamar de re-vírus-volta, quando descobrimos a morte pairando sobre nossas cabeças, quem é apanhado colaborando com ela, a morte, costuma se dar mal.
No mínimo, é para isso que o leitor torce.
*
Mencionei na semana passada o mau humor de Jorge Luis Borges com a etimologia. Alguns leitores protestaram, observando que o argentino (o segundo desta coluna, ora veja) era um cultor da história das palavras. O que também é verdade.
Mais do que curtir etimologia, Borges foi o escritor-filólogo por excelência. E ainda assim deixou numerosas referências desairosas a esse saber em artigos e ensaios: inútil, decorativo,
passatempo de intelectuais.
passatempo de intelectuais.
Contradição do sujeito? Ironia sobre ironia? Coisas de Borges, um dos gigantes. Eu diria que malhar a etimologia é sua história 1, enquanto a 2 fala de seu profundo amor pelas palavras.
Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário