Eles são também uma ótima introdução às ideias centrais do pensamento de Agamben.
Para ele, qualquer poder sempre tende a querer uma dominação mais capilar, profunda e desobstruída da existência da gente.
E, para esse fim, o poder moderno achou uma artimanha perfeita. Deixou que a medicina erigisse sua arte e seu propósito em sistema de valores; com isso, o poder convenceu a todos de que o valor supremo seria o simples fato de viver ou sobreviver (o que Agamben chama de a “vida nua”).
Se sobreviver for o valor supremo, o poder será autorizado a cometer abusos à condição que ele nos prometa prolongar nossa vida. O moto de uma política fundada na valorização absoluta da simples sobrevivência seria: viverás mais se renunciares à tua liberdade ou a parte dela.
Para Agamben, a pandemia atual, assim como o terrorismo antes disso, podem ser ameaças perfeitamente reais, mas funcionam como pretextos para o poder reduzir a nossa liberdade e satisfazer a sua sede de mais domínio.
Não acho que Agamben se oponha hoje às medidas de quarentena e confinamento em vigor. O que lhe importa é chamar a atenção para a parte de liberdade à qual parecemos estar facilmente prontos a renunciar em troca de mais tempo de vida (ou da promessa de mais tempo de vida).
Acrescento: até o século 18, um valor era aquela coisa pela qual daríamos a vida. Desde então, é a vida que se tornou um valor, pelo qual, obviamente, não podemos dar a vida, mas podemos, isso sim, dar a nossa liberdade.
Uma ideia central na obra de Agamben é o “estado de exceção”, ou seja, a declaração pela qual um governo se atribui mais poderes sobre seus sujeitos em nome de circunstâncias excepcionais (guerra, catástrofe natural etc.). Até aqui, o governo brasileiro decretou o “estado de calamidade”, que parece corresponder à ameaça que encaramos. O medo de desordens por falta de abastecimento poderia levar o governo a declarar, por exemplo, o “estado de sítio”, que implicaria o fechamento temporário do Congresso.
As intervenções de Agamben produziram um debate na comunidade filosófica. Muitos —eu concordo com eles—, a começar por Jean-Luc Nancy (ilustre filósofo francês), abrandaram, por assim dizer, a posição de Agamben: mesmo na esperança de que a gente invente ou reencontre valores diferentes da simples “vida nua”, não podemos por isso desprezar a vida e sua preservação.
Slavoj Zizek (também numa resposta a Agamben) vai na mesma direção, acrescentando uma pitada de otimismo: ele espera que a pandemia nos force a inventar novas maneiras de vivermos juntos.
Alimento uma esperança parecida, mas hoje Agamben me serve para introduzir uma regra que tento seguir em matéria de liberdade.
Há dois tipos de liberdade: a liberdade para fazer algo e a liberdade de alguma coisa da qual queremos nos ver livres.
Em 1941, F. D. Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, sonhou com um mundo que respeitasse quatro liberdades fundamentais, duas “liberdades para” —liberdade para falar o que a gente pensa e liberdade para prestar culto ao deus (ou à ausência de deus) que cada um quiser— e duas “liberdades de” —sermos livres do medo e sermos livres da necessidade bruta, ou seja, termos o básico para viver dignamente. As quatros liberdades foram imortalizadas por Norman Rockwell em quatro quadros indissociáveis, que merecem ser meditados. É a partir deles (sempre juntos) que podemos pensar: qual é a sociedade que queremos?
Voltarei ao assunto, mas desde já, uma regra (que talvez seja um dos sentidos da intervenção de Agamben): nunca devemos renunciar à liberdade para viver como queremos sob pretexto de que essa renúncia nos livraria do medo ou da necessidade. Não devemos porque, simplesmente, nunca é preciso.
Confinamento e quarentena são bem vindos hoje, e esperemos que funcionem, mas sem perder a desconfiança que o poder sempre deveria inspirar —sobretudo quando ele emana de um governo que não precisou da pandemia para flertar abertamente com a ditadura, a supressão das liberdades e o fechamento do Congresso.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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