Em 1999, fui convidada para fazer uma palestra num grande seminário em São Paulo, sobre discriminação de gênero no mercado de trabalho.
Ao observar a programação do evento, perguntei às organizadoras por que é que não havia uma mesa sobre a condição da trabalhadora negra, já que poucos dias antes fora publicado e amplamente divulgado um estudo que mostrava que o segmento mais discriminado no mercado de trabalho era a mulher negra.
Só obtive resposta alguns dias depois, quando a principal liderança de um dos mais respeitados institutos de pesquisa sobre trabalho em São Paulo me respondeu: "Quando vai ser realizado qualquer tipo de estudo sobre gênero, se é colocado o dado raça, o tema das mulheres negras assume a "centralidade temática", pois a situação da trabalhadora negra é tão dramática que centraliza todas as atenções.
Eu não era familiarizada com essa expressão, "centralidade temática", mas na hora entendi do que se tratava. Os estudos iriam impactar os olhares sobre mercado de trabalho no Brasil, um país com dificuldade de incorporar todas as intersecções necessárias ao analisar as desigualdades.
Os dados sobre a trabalhadora negra impactariam também a atuação de organizações das Nações Unidas, das agências de pesquisa, das universidades, das fundações e dos institutos do investimento social privado que apoiam estudos, publicações, seminários e campanhas, tomando decisões sobre temas e instituições que devem receber recursos para desenvolver projetos no campo de gênero no mundo do trabalho.
Há aí questões envolvendo poder e recursos financeiros, pois deveria estar colocado no cenário o apoio imprescindível a programas que envolvam diretamente organizações de mulheres negras. Elas são as protagonistas que vêm pressionando instituições para dar respostas à forte exclusão e discriminação no mundo do trabalho.
Mas, não raras vezes, quando surgem recursos financeiros polpudos para trabalhar a discriminação de gênero e raça interseccionadas, esses recursos não chegam às organizações lideradas por mulheres negras.
Frequentemente, são organizações não negras que introduzem a informação "gênero e raça" em seus projetos. Por meio de suas redes de relações e muitas vezes seu conhecimento antecipado de editais que serão lançados, conseguem a aprovação de seus projetos e recebimento dos recursos financeiros, subcontratando organizações e/ou profissionais negros para realizar o trabalho.
Esse modus operandi vem se repetindo há tempos no Brasil: quando uma organização que financia projetos começa a apoiar o tema de equidade racial, ela se sente mais confortável e segura em aproximar-se de organizações brancas.
Assim é que, há alguns anos, quando interpelei a liderança de uma organização europeia sobre a razão pela qual não apoiou organizações negras num importante edital que havia lançado, ela disse: esse edital contempla organizações que já lidaram com orçamentos e prestação de contas de valores expressivos, acima de R$ 1 milhão, e as organizações negras que se propuseram não estão nesse patamar.
E nunca vão estar se se mantiverem esses tipos de procedimento! Há que rever critérios e formas de relacionamentos com segmentos que estiveram excluídos dos espaços que concebem e decidem sobre recursos públicos e privados no Brasil.
Nesse sentido, nesta semana do 8 de Março, que remete diretamente à luta das trabalhadoras, cabe destacar a necessidade de uma reflexão de organizações financiadoras de projetos ou proponentes, sobre o imprescindível respeito ao protagonismo de organizações de mulheres negras no combate às desigualdades, agenda fundamental para o efetivo desenvolvimento do pais.
Texto de Cida Bento, na Folha de São Paulo.
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