Vejo as fotos da Itália, tomada (como o mundo) pelo pânico gerado pelo coronavírus, com seus monumentos e praças desertos, e me vem à cabeça uma expressão da língua italiana que adoro, e que parece ganhar nova relevância nestes tempos estranhos.
No Brasil é comum, ao nos despedirmos de alguém, dizer “nos vemos”. Em outras línguas há expressões semelhantes, ligadas à ideia de um novo encontro, quando as pessoas se reverão (“see you”, “au revoir”), e outras que remetem a uma nova conversa (“nos falamos”).
Mas na Itália, entre várias formas de saudação —incluindo o interessante “ciao”, que tanto é “olá” quanto “até logo”—, é comum também, na despedida, que se diga “ci sentiamo”. Nos escutamos.
Sempre achei fantástico que as pessoas, no lugar de dizer que irão falar uma para outra, digam que vão escutar a outra. Uma bela diferença: o próximo encontro será para ouvir o interlocutor, não necessariamente para fazê-lo ouvir o que queremos dizer. Uma bonita deferência, ainda que só retórica.
A expressão se adapta muito bem a qualquer tipo de compromisso futuro. Até breve? “Ci sentiamo presto”. Até amanhã? “Ci sentiamo domani”. E por aí vai.
Não é a única forma de se despedir por ali. Mas é muito habitual, até onde percebi em minhas viagens pela Itália. E por que ela me vem à mente agora, com nova relevância?
É que neste momento está impossível viajar para encontrar pessoalmente um amigo italiano, ou de qualquer outra nacionalidade. Usando a tecnologia será mais fácil falar com as pessoas.
Mas, num momento de consternação, e em especial na Itália, que entre todos os países é aquele que vive situação mais dramática, temos mesmo que “falar” com eles? Ou não será, antes de tudo, momento de escutar?
A situação desta pandemia coloca para todos o desafio de manter-se em comunidade, apesar do isolamento físico. De manter as relações, que podem e devem ser repensadas, em reação a um mundo onde a comunicação é tão instantânea, mas na prática é tão usada para fabricar bolhas (não laços) e jorrar narcisismos (não semelhanças).
Lembrei-me da Itália também porque, nesta semana, escutava uma sinfonia de Gustav Mahler, a quinta, quando comecei a ler sobre a desesperadora progressão das mortes pela Covid-19 no país. Junto com a matéria, via fotos da desolação sepulcral da praça São Marcos, em Veneza.
Acontece que esta peça musical se tornou indissociável da cidade, desde o lançamento do filme “Morte em Veneza” (1971), de Luchino Visconti.
O diretor italiano levou às telas o romance homônimo do alemão Thomas Mann, lançado em 1912. Livro e filme falam de um dos lugares urbanos mais belos do mundo (e é sobre as glórias e infortúnios da beleza, a obra), e estranhamente têm uma conexão com os dias de hoje: a história se passa naquele cenário maravilhoso, mas assolado por uma epidemia de cólera.
No filme, o famoso adaggieto (o quarto movimento) da sinfonia embala os momentos em que o personagem vivido por Dirk Bogarde sucumbe mortalmente à beleza proibida de um jovem mal entrado na adolescência, cuja simples presença arrebatadora (somada à angústia de uma crise criativa) o levara a negligenciar os cuidados diante da doença que os espreitava.
Naquele momento de delírio final, o cenário não são as ruas tomadas por fogueiras e desespero produzidos pela peste; é a praia do Lido de Veneza, a estreita tripa de areia que limita a laguna, com as espreguiçadeiras do Hotel des Bains dispostas diante do mar, que emoldura a silhueta do jovem.
Mas o jornal também me mostrou algo que escancara a tensão entre a dor e a beleza exposta no filme, e agora na vida. São as imagens dos canais de Veneza, plácidos e límpidos, com peixinhos que se avistam em suas águas transparentes. Uma beleza redescoberta por detrás de uma cidade excessivamente ocupada por um turismo predador.
Mais uma coisa a ser repensada quando acabar este pesadelo. E as pessoas, impactadas pela tragédia, passarem a se escutar mais, quem sabe.
Texto de Josimar Melo, na Folha de São Paulo.
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