quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Sérgio Reis é da paz e do amor assim como quem aglomera em barzinhos


Peço licença para comentar um caso triste e muito particular. Não está diretamente ligado à pandemia e ao bolsonarismo. Mas, sem querer politizar o luto alheio, pode ser que exista alguma relação, sim.

Sábado passado, em Guarulhos, uma mulher de 31 anos morreu durante uma festa de despedida de solteiro. Marina passou mal, uma enfermeira prestou socorro, a ambulância chegou uns 20 minutos depois, mas não pôde fazer nada.

Enquanto acontecia esse drama, a casa de eventos não interrompeu o show. Trata-se de um gastro-bar com capacidade para 550 lugares, que depois do ocorrido manteve sua programação no fim de semana, e que não atendeu à reportagem do UOL para comentar o caso.

Como se costumava dizer nos Estados Unidos, “the show must go on”, o show tem de continuar.
Passei pela Vila Madalena na noite deste sábado (21). Acho que nunca tinha visto aquilo tão cheio. Os carros simplesmente não tinham como atravessar a multidão sem máscara que transbordava dos barzinhos.

Acabou o frio, muitos tomaram a primeira dose da vacina, a maioria mesmo sem vacina já não estava ligando, muitos jovens pegaram Covid e não passaram tão mal assim —o fato é que prevalece uma indiferença completa. Claro que o bolsonarismo se dá bem nessa cultura. Mas a coisa vem de antes.

Há cerca de 30 anos um trio elétrico perdeu o freio e desceu desgovernado uma das ladeiras de Salvador durante o Carnaval. Deixou sete mortos e 25 feridos. A tragédia não foi suficiente, é claro, para interromper as festividades. Os blocos continuaram pulando felizes nos paralelepípedos cobertos de sangue.

“Afinal, o que é que eu tenho a ver com isso?”, pensa o folião “normal”.

A própria ideia do luto desaparece da cultura ocidental. Lembro estranhar, quando tinha uns sete ou oito anos, o fato de minha mãe estar vestida de preto por semanas sem fim. Minha avó tinha morrido, e naquele tempo esperava-se um tempo —dois meses, seis?— antes de aos poucos passar para uma roupa cinzenta ou algum detalhe branco no vestido.

O mundo contemporâneo tem esse aspecto, até saudável, de esquecer a morte, as cerimônias, as condolências. Vencemos a morbidez, especialmente forte na mentalidade ibérica.

Está em curso, entretanto, uma nova doença —a de uma insensibilidade completa e da diversão a qualquer custo.

Interromper o agito de uma banda se alguém está morrendo me parece uma atitude natural. Mas é como se fosse impossível hoje em dia.

Pode-se supor que ninguém sabia da emergência, no segundo andar. Posso também supor que ninguém queria saber. Individualismo extremo no mundo neoliberal? Talvez. Mas o individualismo pode ter diversas formas.

É individualista, sem dúvida, o sujeito que morre de medo de se contaminar e não sai de casa nem por ordem do papa. Será o primeiro na fila da vacina.

Também é egocêntrico, por outro lado, o indivíduo que se entrega ao máximo de baladas que puder. A pandemia não é problema “dele” —acontece com os outros.

O mais comum, imagino, é o seguinte. Nosso amigo não é um fanático, desses que não acreditam na Covid nem na vacina. Ele sabe que o problema é real, que as pessoas podem se contaminar e morrer.
Ao mesmo tempo, ele pensa: “Está certo… Mas também, pô, também não é essa coisa toda”.

Sabe do perigo, mas não está disposto a fazer sacrifícios. É a mesma coisa do fumante, do alcoólatra, do comilão.

Talvez isso seja um traço universal, sem muito a ver com a ideologia capitalista ou com o fanatismo em
torno de Bolsonaro.

Passo, entretanto, ao caso do cantor Sérgio Reis. Conversando com um amigo, ele disse barbaridades contra o STF, defendendo a ideia de “quebrar tudo e tirar os caras na marra”.

Pegou mal; ele se arrepende, e numa entrevista declarou ser uma pessoa “do bem”, da paz e do amor, que se preocupa com a saúde dos outros etc. Não duvido; por que ele não seria?

O que ocorre, eu acho, é que todo mundo vive com a personalidade dividida. Os princípios de uma mínima coerência lógica parecem trabalhosos demais.

Sei que posso me contaminar, mas que se dane. Sou gay, mas acho que vou votar no Bolsonaro. Sou um cara pacífico, mas apoio que os militares quebrem tudo.

Morre uma pessoa no meu show, mas continuo tocando “Jesus Cristo, Eu Estou Aqui”, ou, quem sabe, um “Feliz Aniversário” para o defunto.

Afinal, nem eu nem você temos nada a ver com isso.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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