Existem, é claro, aquelas pessoas que são completamente malucas. Acreditam sinceramente que a vacinação contra a Covid faz parte de um plano de domínio organizado a partir do planeta Marte.
Acho curioso que esse tipo de gente se comporte normalmente a maior parte do tempo. A demência não os impede de parar o carro no cruzamento quando fecha o sinal; não deixam de escovar os dentes por medo de que a pasta também se inclua nos planos de Marte.
Podem argumentar que o creme dental é inofensivo, uma vez que o usam desde crianças. Respondo que, se eu fosse um marciano dotado de real astúcia, seria exatamente por meio da pasta que eu agiria.
Não despertaria a menor desconfiança —ao passo que uma vacinação súbita e coletiva teria, como bem sabe meu interlocutor, toda a chance de levantar suspeitas. Tento entender o que se passa na cabeça de quem desacredita das vacinas.
Qual a diferença entre o caso da pasta de dente e o da vacina? Vejo duas, basicamente. A vacina é “desconhecida”: vem num vidrinho, com um rótulo puramente técnico, e é aplicada por uma funcionária estatal.
A pasta vem numa embalagem chamativa, e é você mesmo quem compra. Mesmo que ninguém pense muito na marca, a aquisição da pasta provém de uma “escolha” individual. O indivíduo assume a plena responsabilidade pela compra.
Mais que isso, pagou pelo produto. O mercado sacrossanto sanciona a qualidade do dentifrício. O dinheiro entregue ao vendedor assume a característica de um certificado de confiança, um atestado da vigilância sanitária.
A vacina, não. Você não paga por ela. É estatal. E, como diz o ditado, quando a esmola é grande o santo desconfia. Como esse tipo de pessoas vê no Estado a origem de todo o mal, em última análise as teorias sobre Marte são apenas a cereja do bolo, e podem ser substituídas por qualquer coisa: plano chinês, plano judeu, plano islâmico. Além de estatal, a vacina é coletiva, é pública, é igualitária.
Comentei em outra ocasião: o ódio da direita ao uso de máscaras e a quaisquer medidas de isolamento tem sua origem provável na repulsa a qualquer ideia de coletividade. A máscara evoca o pesadelo totalitário da China maoísta, quando todos usavam roupa igual.
Aí, diga-se de passagem, surge um aspecto curioso. Os direitistas também gostam de militares, que marcham de uniforme. Suponho que aí exista um sentimento reprimido, um instinto coletivo que a
ideologia neoliberal recalca.
O desejo de igualdade persiste, mas se distorce em perversões: fardas verde-oliva, camisas negras, uniformes da seleção brasileira, disciplina, obediência, rebanho.
Seja como for, se a vacina tivesse de ser comprada em farmácia, e aplicada no Einstein ou no Sírio, é possível que uma parte das resistências da direita desaparecesse. Não que eu esteja propondo isso, é claro.
Mas a teoria da conspiração não é só privilégio da direita. Quem não conhece o adepto de homeopatia radical ou de medicina alternativa que milita contra antibióticos e a indústria farmacêutica?
Depois da talidomida e do criminoso caso dos opióides, não é de espantar que desconfianças apareçam.
A questão, como sempre, está em equilibrar-se entre medos diferentes. O natureba que não quer se vacinar passa pelos temores mais variados. Assusta-se diante de uma salsicha, de uma Pringles, de um sorvete de limão, de uma aspirina… Por que não teria medo da AstraZeneca?
Só não tem medo da Covid. Acho, entretanto, que seu medo diminuirá quando todo mundo (menos ele) estiver vacinado. Não arriscará sua pele, contudo, nesse processo. É curioso.
Sem querer, ele próprio estará fazendo parte de um experimento coletivo, em que os outros são cobaias, e ele o beneficiário.
Mais uma vez, o que está por trás disso é a vontade de sair do coletivo, de se colocar à parte dos demais.
Seja como for, quem prefere a “imunidade de rebanho” sabe do que está falando. Rebanho são os outros, os que morrem.
Até certo ponto, entendo isso: tenho vergonha, em manifestações, de sair gritando palavras de ordem junto com a multidão. A própria ideia de ficar numa fila e colocar o braço de fora me dá alguma vergonha: tenho braço, como os outros? Não é meio obscena, essa palavra “braço”?
Não faz mal: a vacina, no meu braço, é o melhor remédio contra essa vergonha. Recebo, feliz, o atestado de que sou humano, feito da mesma massa dos demais.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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