quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Quem dera fôssemos tratados como gado na pandemia


Nesta semana, o FDA dos EUA, órgão equivalente à Anvisa, publicou uma postagem condenando o uso de ivermectina contra a Covid-19, que traduzo: “Você não é um cavalo. Você não é uma vaca. Sério mesmo, gente. Para com isso.” Já no Brasil, quem dera fôssemos tratados como nosso gado.

Por aqui, o Ministério da Saúde deixou de recomendar cloroquina como tratamento contra Covid em maio de 2021, com o começo da CPI da Covid. E não quando o Conselho Nacional de Saúde pediu, em janeiro do mesmo ano. O ministro da Saúde ainda fala contra a obrigatoriedade do uso de máscaras, apesar de todas as evidências científicas. Sem falar no atraso massacrante das vacinas que a CPI revelou. Talvez fosse melhor pedir ao Ministério da Agricultura dicas de como gerir uma doença infecciosa. Afinal, o Brasil é exemplo de gestão de pandemia na Organização Mundial da Saúde Animal, a OIE. No caso, a pandemia de febre aftosa entre o gado.

Essa doença infecciosa causa aftas na boca e nos cascos que afetam seu crescimento, a produção de leite e podem inclusive matar bezerros. E como seu vírus causador é transmitido pelo ar e pelo contato entre animais e com tratadores, ele pode se espalhar rapidamente entre rebanhos. Tanto que países ricos como China, Japão, Coreia do Sul, Reino Unido e França tiveram surtos recentes. Mas o Brasil, maior exportador mundial de carne bovina, faz um excelente controle dessa doença com as ferramentas que o governo federal ainda descarta contra a Covid: quarentena, isolamento, teste, rastreio de contatos, intervenção rápida e vacinas.

Em parte, foi para centralizar o combate a essa doença que afeta o país todo que se criou o Ministério da Agricultura em 1910, sem transferir a responsabilidade e a culpa para estados e municípios.

Criamos uma infraestrutura de laboratórios de testes, treinamos profissionais, temos campanhas de conscientização de criadores e políticas bem estritas de circulação e quarentena de animais para conter casos. Os animais que vão de uma fazenda para outra precisam fazer quarentena e ser testados na saída e na chegada. E, no primeiro teste positivo, os animais de criação da região toda são isolados e testados.

Nas últimas décadas, enquanto perdemos fábricas de vacinas humanas até só restarem a Fiocruz e o Butantan, o país viu a criação de dezenas de fábricas de vacina veterinária que produzem a vacina da febre aftosa com tecnologia de ponta e precisam importar uma minoria de ingredientes.

Na década de 1990, o Programa de Controle da Febre Aftosa foi transformado no Programa Nacional de Erradicação da Febre Aftosa com prazos e resultados que tinham que ser atingidos. O último surto de febre aftosa no Brasil foi em 2006. Em 2018, fomos declarados pela OIE como um país livre de aftosa com a vacinação —e não com ivermectina. E algumas regiões como Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia e Acre são reconhecidas como livres de febre aftosa sem precisar de vacinação. Mas depois de quase 600 mil mortes registradas, nós ainda não temos nenhum programa nacional de controle ou erradicação da Covid.

Tem quem diga que o brasileiro é tratado como gado. Quem dera. Se fôssemos, teríamos testes, rastreio de contatos e prioridade na vacinação contra a Covid, como temos na aftosa. Esse investimento em ciência, pesquisa e desenvolvimento tecnológico para a saúde do gado deu ótimos resultados. Enquanto na saúde humana, com a Covid, somos exemplo mundial de negacionismo com tratamento precoce, negligência de saúde, crueldade contra indígenas e a estupidez de líderes que não usam máscaras.


Texto de Atila Iamarino, na Folha de São Paulo

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