Na missa de sétimo dia do artista plástico Carlito Carvalhosa, o escritor, poeta, curador e historiador Luis Pérez-Oramas fez a mais bela das elegias.
Nascido em 1960, em Caracas, Pérez-Oramas é um cidadão do mundo. Entre tantas contribuições à arte, ele foi curador da 30ª Bienal de São Paulo e do Museu de Arte Moderna de Nova York, de 2003 a 2017.
A retrospectiva de Lygia Clark no MoMA, em 2014, foi obra dele. A mostra era parte de um projeto de Pérez-Oramas de livrar a arte moderna latino-americana do estigma de ser apenas um galho periférico da produção americana do século 20.
"Lygia Clark não é minimalista", afirma o curador, "isso é uma simplificação da nossa narrativa histórica, uma derivação, para não dizer dominação ideológica da nossa singularidade. "Os grandes modernistas, pertencentes ao campo do modernismo, ultrapassam o modernismo. Eles são instrumento e arma da política do incomensurável. O modernismo é uma criação americana que não cabe nas categorias impostas pelos americanos."
A Venezuela que pariu Pérez-Oramas expulsou os Pérez-Oramas de casa.
Hugo Chávez, me disse ele, agiu, primeiro, sobre a indústria petrolífera, esteio da economia nacional, transformando-a num braço dos interesses do Partido Socialista Unido da Venezuela. A área de pesquisa foi desmantelada e grande parte dos engenheiros, cientistas e pesquisadores do setor rumou para o aeroporto.
Medíocre e rachada, a oposição foi incapaz de organizar uma frente ampla que servisse de alternativa para Chávez e seu herdeiro, Maduro.
A cooptação da polícia e das Forças Armadas foi crucial para perpetuá-los no poder, mas a pá de cal das instituições do Estado Democrático de Direito viria mesmo do aparelhamento do Judiciário.
Nas últimas duas décadas, a Venezuela enfrentou não só o êxodo dos desesperados como a fuga massiva de cérebros. As sanções externas e a queda do valor do petróleo contribuíram para o aprofundamento da miséria, mas foram as tensões internas que geraram a tragédia.
Populismo; aparelhamento da polícia, das Forças Armadas e do Judiciário; desemprego; fuga de cérebros —a comparação com o Brasil é inevitável.
Pérez-Oramas conta do apagão do sistema de dados de registro de nascimento do país, que obrigou a população a se dirigir aos órgãos competentes, munida de documentos físicos que comprovassem a sua existência.
As universidades brasileiras já enfrentavam ataques e arrochos, quando, no fim de julho, uma pane no sistema de informática do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico interrompeu o acesso ao site.
A falha pode ter atingido menos pessoas do que o sumiço do registro de nascimento de milhões de venezuelanos, mas a comunidade acadêmica aguarda ansiosa o reestabelecimento do sistema.
Teme-se tanto o desaparecimento de trabalhos relevantes sobre o Brasil, quanto dos currículos registrados na plataforma Lattes, sem os quais ficam suspensas a contratação de novas bolsas de pesquisa e a abertura de vagas de iniciação científica, de mestrado e doutorado.
O apagão do CNPq pode ser obra do acaso, já o veto do presidente ao projeto de lei nº 3.477/20, que disponibilizaria o sinal de internet de forma gratuita a alunos e professores da rede pública durante a pandemia, não. Nem a defesa do fim da isenção tributária para livros, um luxo dos abastados, segundo a Receita Federal.
O subdesenvolvimento é uma obra de século, já dizia Nelson Rodrigues.
A academia, a ciência e a cultura são vistas, hoje, como penduricalhos de uma elite mamadora das tetas. Trata-se de um projeto de imbecilização geral da nação, que anseia pelo posto de periferia da periferia intelectual do planeta, sina que o esclarecido Pérez-Oramas luta para reverter.
Sem identidade ou caráter, coadjuvantes da história alheia, que razão existiria para mantermos um Museu Nacional ou uma Cinemateca? Gasto infundado. Um incêndio aqui, outro ali, vem até a calhar.
A floresta é o mesmo caso, um patrimônio inútil de biodiversidade. Sem mato não tem Ibama; sem índio não tem Funai; sem velho não tem rombo da Previdência e sem universidade não tem bolsa nem gente para reclamar.
Para que museu, memória e educação? Quem precisa de Lygia Clark? Para que cocar, samba, funk, João, Villa-Lobos e Pixinguinha? Para que serra da Capivara? Para que Machado, Euclides e Guimarães, para quê?
Melhor tacar fogo logo em tudo, queimar as matas, o sítio do Burle Marx, o Masp, a USP, o Capanema e o MAM, os teatros municipais e o que resta da Cinemateca.
É queima total de estoque! É autocombustão! A Venezuela que me aguarde.
Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo.
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