quarta-feira, 25 de agosto de 2021

A pandemia me fez considerar ruim o que antes estava ótimo


Sempre gostei de café. Ou achava que gostava de café. Gostava tanto que bebia qualquer café. Quando digo qualquer café, me refiro ao petróleo que sai da térmica no fundão do ônibus leito, à graxa fria das duas horas da manhã num set de filmagem, o café dormido do camping, o café da casa da avó que já vinha coado no açúcar, o café morto e ressuscitado no micro-ondas, ou frio mesmo, gelado, solúvel, regado de aspartame. Não importava. Era café.

Até que um amigo, que hoje vejo que talvez não fosse meu amigo, me apresentou a um café de torra clara, microlote, moído na hora. "Prova isso", ele disse. Relutei, enojado pela cor acastanhada, transparente feito um mate de galão, âmbar feito os pratos da nossa infância. "Valeu, mas gosto de café forte", respondi, fiel ao princípio brasileiro de que café bom é café preto. O amigo insistiu. Tomei por educação. E teria sido melhor ele me apresentar ao crack.

Não tem nada pior do que descobrir uma coisa boa. O ser humano quando descobre uma coisa boa não quer mais saber de outra coisa. E passa a achar ruim o que antes tava ótimo. Já tinha acontecido com outras ervas. Estava feliz com o prensado até descobrir a flor. Maldito dia em que alguém me apresentou um "homegrown". Tornei-me o que mais temia: um ervochato. Não vou dizer que recuso um prensado, mas tusso feito um adolescente. Perdi muita moral entre os amigos. Talvez tenha perdido, inclusive, amigos.

Com o café, aconteceu a mesma coisa. Ganhei um hobby, perdi amigos, perdi tempo, perdi dinheiro. A pandemia piorou tudo. Já não consigo tomar um café fora de casa sem reclamar do gosto de cinzeiro e inseto. Viajo com um kit na mochila —grãos, filtro, suporte de filtro, moedor. Quando encontro um dos meus, disserto sobre os novos catuaís do Caparaó —e outros assuntos insuportáveis pra quem está em volta e não compartilha dessa comorbidade.

Outro dia percebi que precisava parar: perguntei pra minha consorte se ela também conseguia identificar as notas de tamarindo no retrogosto de um bourbon mineiro e percebi pelo seu olhar de desprezo que ela estava cogitando o divórcio. Afinal, foi dormir com um comediante e acordou com um sommelier de café. Ninguém quer estar casada com essa pessoa. Com um comediante tampouco, é verdade. Talvez ninguém queira estar casada com pessoa alguma. Mas o sommelier de café está lá no fim da fila.

Em minha defesa, continuo não entendendo nada de vinho, cerveja, charuto, e todas as coisas cuja expertise te tornam insuportável. Peço por favor que nunca me expliquem.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

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