Algumas tecnologias vieram pra acabar com o pouco que nos restava de paz. O bluetooth, por exemplo. Não que eu tenha horror a ele, ele é que tem horror a mim. Trata-se de uma tecnologia voluntariosa, cheia de implicâncias, corpo mole e má-vontade --astrólogos dirão que é geminiana.
Responsável por conectar dois aparelhos, o bluetooth faz a ponte quando dá na telha e quando tem química. "Desculpa, mas o encontro do seu Galaxy com sua JBL não não deu liga. Estão em momentos diferentes de vida e alegaram incompatibilidade de agenda."
Acontece inclusive de dois aparelhos serem velhos conhecidos e, do dia pra noite, resolverem fingir que não se conhecem. E às vezes rola o contrário: sua caixinha teve um breve caso de uma noite com o celular do vizinho --mas pro resto da vida ela ficará reconhecendo aquele celular, lembrando dele como um ex que não superou o divórcio.
Existe apenas uma ocasião em que bluetoooth é infalível: quando se trata de perturbar o silêncio da vida em comunidade. O advento da caixinha de som acabou com a paz na esfera pública. Já existia uma solução pra quem gostava de ouvir música na rua: o fone de ouvido. A caixinha é uma espécie de fone que todo o mundo à sua volta é obrigado a colocar no ouvido também. Ir à praia se tornou uma experiência enlouquecedora: os barões da pisadinha se misturam aos aviões do forró, cada um num tom e num compasso, e de repente você está ouvindo os aviões da pisadinha.
O problema é que o brasileiro não reconhece o silêncio como um direito. Tenho a impressão de que a caravela de Pedro Álvares Cabral já ancorou por aqui fazendo um furdunço, com o famoso "terra à vista!". Trezentos anos depois ainda estávamos urrando. Nossa independência, afinal, foi proclamada com um brado, famoso por ter sido retumbante. O gesto mais famoso do nosso imperador foi um berro. Nosso país já nasceu na base da gritaria.
Tivesse Dom Pedro proclamado a Independência com um sussurro, talvez não tivessem ouvido do outro lado do Ipiranga. Mas tenho certeza de que estaríamos em melhores lençóis.
O imperador gritou, se esgoelou, e foi embora. Na contramão, nosso produto de maior aclamação internacional foi justamente a voz do João Gilberto. Nossa maior contribuição pro mundo, quem diria, é o sussurro. Foi o cochicho que nos levou ao topo das paradas de sucesso. O Brasil é gigante quando fala baixinho. Nossa independência só vai acontecer quando ela for proclamada ao pé do ouvido.
Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo.
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