terça-feira, 30 de março de 2021

Morre Contardo Calligaris, o psicanalista italiano que soube levar o Brasil ao divã


O estilo de se expressar de Contardo Calligaris, morto nesta terça (30), aos 72 anos, em decorrência de um câncer, era bastante particular. Gestual envolvente, olhar sedutor, tiradas irônicas e um sotaque que embaralhava italiano, inglês e português eram a marca de sua presença tanto num debate profissional como no hábito de que ele tanto gostava, o da tertúlia com os amigos.

A morte de Calligaris foi confirmada por seu filho, o cineasta Maximilien Calligaris, numa rede social. Segundo ele, diante da proximidade da morte, seu pai disse que esperava "estar à altura". O psicanalista, escritor e dramaturgo se firmou nas duas últimas décadas no Brasil como um fino observador da cultura e do comportamento do país.

O diretor de Redação da FolhaOtavio Frias Filho, morto em 2018, gostava de provocar Calligaris, dizendo que, no fundo, ele devia ser um argentino que tinha inventado uma vivência por vários países só para justificar o sotaque que virou sua marca.

Calligaris, de bom humor, sempre ria dessa brincadeira. Aliás, não era pequena a admiração de Frias Filho por ele. Ambos compartilhavam um gosto semelhante no que diz respeito a cinema e teatro e um interesse por entender a sexualidade humana.

O sotaque, expliquemos logo, era resultado do fato de Calligaris ser italiano, porém de ter sido alfabetizado em inglês. Vinha de uma família que havia lutado contra o fascismo de Mussolini e este era justamente o idioma da resistência, como conta Calligaris em "Hello, Brasil", escrito nos anos 1990.

Na reedição desse livro, em 2017, Calligaris afirmava que já não poderia mais escrever sobre o país com o olhar de um estrangeiro, já que se sentia cada vez mais brasileiro. Ele nasceu em Milão, em 2 de junho de 1948. Escritor, psicanalista e dramaturgo, manteve uma coluna neste jornal desde 1999, às quintas-feiras, dedicadas a temas da psicanálise, filmes, peças e livros.

“Nascido em Milão, cidadão do mundo e tradutor do Brasil, Contardo Calligaris elevou o patamar do colunismo de cultura no Brasil. Foi testemunha ocular das principais mudanças de comportamento dos últimos 50 anos. Deixará uma lacuna gigante”, afirmou Sérgio Dávila, diretor de Redação da Folha.

Com o tempo, certa rigidez das abordagens iniciais se reduziu. Os temas deixaram de ser mais acadêmicos ou mais relacionados a seu consultório. Calligaris passou a se sentir mais à vontade —talvez mais brasileiro— para tratar de acontecimentos de sua vida cotidiana em São Paulo, virando um cronista da cidade, com um olhar ácido e divertido, transformando acontecimentos prosaicos em peças sobre o comportamento humano.

Como numa das colunas, em que ele contou estar dirigindo numa madrugada na avenida Sapopemba, na zona leste, e, ao ver um cão prestes a tentar atravessar a via, e assim se arriscar à morte, desceu do carro e, para o seduzir a ficar onde estava, comprou para ele um faustoso churrasco numa barraquinha e o tranquilizou.

Sua relação com a capital paulista teve início em 1986, depois de lançar seu livro "Hipótese sobre o Fantasma na Cura Psicanalítica"". Calligaris veio ao Brasil para fazer palestras, e recebeu a proposta de um grupo de psicanalistas para que passasse 15 dias a cada dois meses em São Paulo, para serem analisados por ele. Aceitou.

Depois de várias viagens, acabou se instalando num apartamento nos Jardins. E passou a ter o hábito de jantar quase todos os dias no restaurante Tatini, na rua Batataes. Quando ia sozinho, levava um livro ou anotações. Mas também era ali que gostava de levar amigos para papear até altas horas.

Calligaris gostava muito de escrever e ler em cafés —hábito mais europeu do que paulistano— e sentia falta de locais para fazer isso em São Paulo. Mesmo assim, o cultivava, e várias vezes se pegou fazendo anotações na calçada mesmo. Por isso, era normal o ver sempre com uma ou duas canetas no bolso.

Ler e escrever em aviões também eram parte de seu hábito. E, como viajava muito, chegava a ler dois livros por voo entre São Paulo e Nova York, contando o tempo que passava no que chamava de "limbo", os aeroportos e salões de embarque.

Calligaris teve uma formação católica, filho de um cardiologista e de uma tenista. Na sua adolescência, na Itália, conta que havia vivido "paixões ideais contraditórias". Eram os anos 1960, e ele contava ter sido logo influenciado pela obra do jornalista liberal e antifascista Piero Gobetti. Depois disso, leu Antonio Gramsci e passou a se considerar um socialista. Por outro lado, ia se apaixonando também pela contracultura americana.

Tinha uma relação complicada com sua origem italiana, que não negava mas com a qual mantinha certa distância —achava que a imagem de seu país no exterior estava demasiado ligada ao fascismo ou à estridência de sua cultura popular.

Trabalhou, ainda na juventude, num jornal mensal de cultura, o "Utopia". Depois de passar uma temporada no Reino Unido, foi estudar em Genebra e em Paris. Na Suíça, foi aluno do historiador Jean Starobinski e do crítico literário George Steiner. Na França, ele se aprofundou no estudo da psicanálise, estudando com Jacques Lacan e Michel Foucault. Sua tese em semiologia foi orientada por Roland Barthes.

Contava que se sentia "um peixe fora d'água", na França dos anos 1970, por ter uma formação psicanalítica lacaniana, estudando na escola freudiana de Paris, mas, ao mesmo tempo, interessado na obra de culturalistas americanos como Karen Horney e Erich Fromm.

Seu ímpeto contraditório fez com que o pai, quando Calligaris ainda era criança, dissesse ao filho que tinha dado a ele um nome errado. Que o deveria ter chamado de Contrário, e não de Contardo.

"Não que eu fosse permanentemente do contra, mas, desde pequeno, parecia que eu só sabia começar minhas frases por um 'mas'", ele dizia.

Nos Estados Unidos, foi professor de antropologia na Universidade da Califórnia e de e estudos culturais na New School, em Nova York. No Brasil, começou a atuar como psicanalista e, aos poucos, a construir uma personalidade pública constantemente chamada a falar em público sobre temas sobre amor, relações humanas, sexualidade e questões existenciais. Sua relação com São Paulo foi se tornando mais intensa e seu personagem, mais popular. Vieram, então, suas obras para teatro, romances e uma série para a televisão.

Teve oito casamentos e explicava essa cifra afirmando que era porque, quando se apaixonava, não queria "ver a pessoa apenas de vez em quando", mas sim que gostava da convivência e do desafio de construir uma relação. Seu interesse pela sexualidade humana também fez dele um explorador nessa área, que o levou a se interessar pelo que se passava no submundo sexual paulistano.

Entre suas aventuras, uma das que fez pública, foi o caso com uma malabarista de trânsito de São Paulo. Mas sua busca e seu interesse eram contínuos. Dizia aos amigos que precisava fazer sexo todos os dias, senão não dormia direito.

Calligaris teve um filho, Maximilien, nascido na França. Até recentemente, ainda lutava boxe, o esporte que praticou na juventude e que rendeu a ele uma bolsa de estudos quando vivia na Suíça.

Numa entrevista a um meio gaúcho, em maio de 2020, Calligaris falou sobre a pandemia do coronavírus e sobre o medo que sentia de que alguns hábitos e cenas do passado não voltassem mais.

Entre eles, dois dos quais gostava tanto, como ir ao cinema ou entrar num avião sem medo. E, para exemplificar sua tristeza com a pandemia, que logo de início afetou tanto o seu país-natal, falou de uma imagem que viu da Piazza del Campo, de Siena, deserta por causa do confinamento. Era ali, disse, que, além dos turistas, os jovens caminhavam e buscavam flertar ou iniciar uma aventura amorosa. E se isso não voltasse nunca mais?


Contardo Calligaris (1948-2021). O texto é de Sylvia Colombo, publicado na Folha de São Paulo


Uma perda imensa. Eu estou bastante abalado. 

Medo do espelho


governo federal é diretamente responsável por uma crise humanitária no país, decorrente do agravamento sem precedentes da crise sanitária internacional, com capacidade de ameaçar o resto do mundo. Como lidar com isso?

Não será tarefa fácil. Muitos imaginam o homem no Palácio do Planalto como um tirano enlouquecido que sequestrou a sociedade brasileira. Porém, não há estelionato eleitoral no atual governo. Todos que o elegeram, ou votaram nulo ou branco, estavam dispostos a pagar um preço para atingir objetivos políticos específicos, que, então, imaginavam pudessem ser compatibilizados.

Eu listo: eliminação do PT como “player” político; políticas neoliberais para os meios empresariais e financeiros; fortalecimento de denominações religiosas fundamentalistas que acreditam num Deus de ira e que se apressaram em ver no vírus um agente d’Ele; fortalecimento e inimputabilidade das corporações militares e, dentro delas, de práticas de tortura e extermínio; tolerância para o exercício de práticas antiecológicas, machistas, racistas e homofóbicas seculares, hoje criminalizadas com base na Constituição Federal de 1988.

Em nenhum caso a razão do voto e do apoio foi desinformação ou déficit cognitivo, mas leituras situadas da realidade que apostaram no horror, sintetizado no gesto de campanha de atirar em alguém com uma arma, porque acreditaram que não seriam atingidos. E não, o combate à corrupção não foi essencial para a eleição do deputado do baixo clero para a Presidência da República.

O bem recebido retorno de Lula ao jogo político abre alguma esperança de que os pressupostos que uniram tal frente macabra já não estejam mais dados. Porém, para que possamos superar de forma mais rápida o genocídio em curso, é preciso saber se a conta ficou realmente alta demais e para quem.

A catástrofe agora anunciada assustará a elite política de Brasília? Temerá o centrão ser responsabilizado como cúmplice de crime contra a humanidade denunciado nos tribunais internacionais? O “mercado”, na pele de jornalistas, “Faria Limers” e investidores que permanecem no país, temerá, ao menos, o colapso da rede privada de saúde?

Isso vale para as elites, mas também para os setores populares que caminharam para a extrema direita. Nas periferias, mais tragédia, muitas vezes apenas reforça os cultores da intolerância, bem como o poder paralelo de grupos paramilitares.

Talvez a fome, mais que a peste, possa fazer este eleitor conservador perceber a morte em massa de brasileiros incentivados pelo presidente a se aglomerarem e a não usarem máscaras, sem vacina e sem auxílio emergencial, como a necropolítica que é. Talvez não.

A princípio, o caminho de volta, se houver, passa por 2022. Será, e já está sendo, muito doloroso. 

Ao finalizar esse artigo, visitei o site do Memorial Inumeráveis, iniciativa de 2020. Quando não temos saída, precisamos, ao menos, dizer o nome dos nossos mortos.


Texto da professora Hebe Mattos (Universidade Federal de Juiz de Fora) na Folha de São Paulo

O amor cobra sua fatura

 

Cantado em verso e prosa, o amor entre humanos, quando correspondido, é das maiores fontes de satisfação que se tem notícia. Seja fugaz ou duradouro, paixão ou amor, com ou sem sexo, trata-se de uma experiência da qual ninguém sai ileso.

Não é de se estranhar que no auge do encontro amoroso a realidade da morte se apresente da forma mais cristalina para os amantes. O orgasmo, também chamado de “petite mort”, revela como o máximo do prazer flerta com o fim —o apagamento da consciência.

A jura de amor tem sempre algo de despedida, pois cada segundo no qual se desfruta da presença do outro é um segundo a menos do tempo que resta. O desejo se renova na exata medida do temor de perder o amado.

Nos casais, o amor é o que pode sobrar, quando acaba o chantilly da paixão. Por vezes, o amor erótico muda o destino de uma amizade, transformando, de repente, o que era casto e fraterno em sexo e espanto, que pode ser seguido de arrependimento ou gostinho de quero mais. O amor a qual me referi até aqui é herdeiro do ideário romântico que nasce com o homem moderno.

Mas o amor é bem menos circunscrito a um período histórico, sendo a base das relações humanas. Basta citar o amor fraterno, o amor filial, o amor espiritual, cada um com seu grau de apaixonamento próprio, ainda que apartados do intercurso sexual.

Os rituais fúnebres da pré-história humana revelam formas de honrar e lamentar a perda de pessoas queridas e são os primeiros indícios da capacidade humana de simbolizar a morte e o amor, na forma de lamento por sua perda.

O amor transferencial proposto por Freud no dispositivo psicanalítico, por sua vez, trata de um desencontro previsto e que não pode prescindir de um bom e ético manejo. O paciente ama no analista algo que ele mesmo —paciente— deposita lá. O analista sustenta esse equívoco sem se permitir a impostura de acreditar que o amor que o paciente lhe transfere diga respeito aos encantos do analista.

Como o próprio nome diz, é afeto transferido de outrem e cabe ao analista abster-se de corresponder-lhe.

Nada impede que reconheçamos no trabalho e na pessoa do analista seu valor, e que o amor decorrente da gratidão e da admiração surjam ao longo do tratamento. Mas se trata de afeto que não pode ser confundido com o que o paciente deposita de excesso na relação.

Breuer, parceiro de Freud na pré-história da psicanálise, escorregou na casca da banana deixada por Anna O., a musa da histeria e paciente fundadora do dispositivo analítico. Acreditou que o amor da jovem paciente por ele fosse devido a seus irresistíveis dotes de senhor barbudo. Freud, de sua parte, foi impecável no quesito abstinência. Lacan foi bem mais questionável como podemos ler no delicioso “A Vida Com Lacan” (Zahar, 2017) da psicanalista Catherine Millot —paciente e amante do analista francês.

O amor romântico foi criado e assim poderá desaparecer, como seu declínio vem apontando. Não vejo grandes problemas nisso, inventa-se outras formas.

O mesmo não se pode dizer do amor fraterno, cujo declínio aponta para o fim da civilização. De fato, de todos os amores, o que mais carecemos hoje é esse último.

Nem políticos, nem soldados, nem cientistas… os heróis do nosso tempo são as pessoas ainda capazes de amar o outro, o desconhecido, o anônimo. O resto é o horror da indiferença. O resto é contar pessoas como se fossem números: até ontem, 312 mil.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo


domingo, 28 de março de 2021

Jogadores do Maracanazo, como Barbosa, não são festejados ao completarem um século


O lateral direito Augusto completaria 100 anos em outubro passado e a data passou em branco.

O zagueiro Danilo também, em dezembro de 2020.

Assim como Jair Rosa Pinto, lembrado, é verdade, aqui e ali no último domingo (21), provavelmente mais pelos caçadores de efemérides em tempos de pandemia.

Neste sábado (27) Barbosa faria 100 anos.

Em setembro que vem será a vez de Zizinho, o Mestre Ziza, ídolo do Rei Pelé, dia 14.

Em 2022, Bigode, Ademir de Menezes, o Queixada e Chico.

Juvenal fica para 2023 e Bauer só em 2025. Entre um e outro, em 2024, Friaça, o autor do solitário gol brasileiro, o do 1 a 0 no fatídico 2 a 1 para o Uruguai.

De todos os brasileiros participantes da final da Copa do Mundo de 1950 no Maracanã com lendários 200 mil torcedores, o goleiro negro Barbosa é o protagonista mais dramático, bode expiatório da derrota dolorosa.

Moacyr Barbosa Nascimento morreu culpado irremediavelmente em 2000, condenado à prisão perpétua como lamentava nos últimos anos de vida.

Não por coincidência, a culpa é até hoje dividida com outro negro, o lateral esquerdo Bigode, acusado de covardia por não ter reagido à suposta bofetada no rosto desferido pelo capitão uruguaio Obdulio Varela, e em cima de quem Gigghia fez o gol da virada.

Obdulio, também negro, negou a agressão até morrer e para sempre é tido como o grande herói daquela Copa, pelos brasileiros inclusive, como se os negros uruguaios valessem mais que os nacionais.

A injustiça com Bigode, no entanto, não produziu restrição aos laterais pretos, diferentemente do que se deu em relação aos goleiros, a ponto de a seleção brasileira só voltar a ter um como titular em 2006, na Alemanha, 56 anos depois do Maracanazo.

Nunca ninguém admitiu o preconceito, nem precisava.

O centenário de Barbosa não é comemorado. No máximo, é lembrado como desagravo, tardio, sem o testemunho dele, cuja entrada na concentração da seleção, em 1993, antes do jogo contra o mesmo Uruguai que definiu a classificação para a Copa nos Estados Unidos, teria sido negada (há quem desminta) para não dar azar.

Tivesse mesmo tomado o tapa, Bigode, caso o Brasil saísse vencedor, seria elogiado pela maturidade, pelo sangue frio, por não ter caído na provocação e desfalcado o time.

Também entre o 2 a 1, marcado aos 34 minutos do segundo tempo, e o fim do jogo, houve tempo suficiente para o empate que significaria o título.

Não importa: a culpa é de Barbosa, pela falha no gol.

No dia 1º de janeiro de 2046, Roberto Rivellino, um dos heróis do tricampeonato em 1970, completará 100 anos e será devidamente festejado.

Apesar de, em 1974, ter sido responsabilizado injustamente pela derrota do Corinthians contra o Palmeiras, na decisão estadual que acabaria com o jejum de 20 anos sem títulos.

Três dias antes, no primeiro jogo das finais, empate em 1 a 1, ele recebeu milhões de elogios por ter jogado para o time, sem um pingo de estrelismo.

Pois repetiu sem tirar nem por a atuação no jogo definitivo, derrota alvinegra por 1 a 0.

O mundo caiu sobre sua cabeça, tronco e membros e, por exigência da torcida, o melhor jogador da história corintiana acabou vendido para o Fluminense.

Melhor prova impossível de que a voz do povo nem sempre é divina.

Melhor prova, não! A melhor segue sendo a da injustiça cometida com Barbosa.


Texto de Juca Kfouri, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 24 de março de 2021

Os mortos de cada um


Não é que a morte esteja chegando perto. Desde que a Covid começou, ela nunca esteve longe. Meu primeiro amigo a partir com a doença foi o artista plástico e educador Daniel Azulay, criador da Turma do Lambe-Lambe, e isso já tem um ano. Foi em março de 2020, quando ainda começávamos a nos acostumar com as máscaras. Em maio, a morte de Aldir Blanc equivaleu a silenciar um milhão de palavras --as que ele ainda não tinha escrito. Mas foi todo um mês de devastação: a radialista Daysi Lucidi, o cantor Carlos José, o compositor Evaldo Gouveia, o romancista Sergio Sant'Anna, a poeta Olga Savary e a grande dama da sociedade Lourdes Catão.

Em junho, perdemos a cantora Dulce Nunes, uma das inspiradoras da bossa nova, o economista e historiador Carlos Lessa e o fotógrafo Pedro Oswaldo Cruz, a quem o patrimônio histórico do Rio tanto ficou devendo. Em julho, o jornalista José-Itamar de Freitas, o teatrólogo Antonio Bivar e o apresentador de TV Rodrigo Rodrigues. Em agosto, o médico e cientista Elsimar Coutinho. Nos meses seguintes, a maldita pareceu dar uma trégua, mas voltou a ceifar em dezembro, levando, entre muitos, a atriz Nicete Bruno e a jornalista e psiquiatra Germana de Lamare. E não parou mais.

A alguns fui só apresentado; com outros, convivi por décadas. Mas os admirei todos, e não é possível resumir o que deram aos seus amigos e à cultura do Brasil.

É intolerável pensar que ainda poderiam estar aqui, ativos e produtivos, não fosse um governante estúpido, cruel e debochado que, em vez de levar a nação a se proteger, semeou a morte ao instaurar de propósito a confusão. O que falta para responsabilizá-lo pela perda de cada vida e da vida de 300 mil brasileiros?

Essa lista contém apenas alguns dos meus mortos. Que cada leitor faça a sua. Quando a besta-fera começar a responder por seus crimes, precisaremos dessa contabilidade em detalhes.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 22 de março de 2021

O que faria se sua mãe jamais soubesse que você é o maior ídolo das novelas?


No capítulo em que Carlão acha uma mala com notas de cem cruzeiros dentro de seu táxi, dizem que faltou espaço no sofá lá de casa. Todos amontoados diante do televisor.

Francisco Cuoco já era o artista mais popular das novelas, além de galã favorito da autora Janete Clair —e da minha mãe. Da minha avó. De todas as vizinhas do bairro.

Não havia nada sobre ele que as fãs e a revista Amiga não comentassem: das exuberantes sobrancelhas à respeitada carreira no teatro, passando pela simpatia com que valsou na festa de 15 anos da sobrinha de uma conhecida.

O pop não poupava Cuoco. “Teve uma vez que ele foi cercado por tanta gente que congestionou o Viaduto do Chá”, relatava minha madrinha.

Cresci tão próxima de “O Astro” que só faltava conhecê-lo de perto. Logo eu, que nem ligava para famosos. Ou pelo menos achava isso, até que esbarrei em Francisco Cuoco nos bastidores. Foi como se um coro de parentas me berrasse ao ouvido: “Vai lá, fala com ele! Pergunta se ele beijava a Regina Duarte pra valer!”. Ai, que vergonha alheia da minha memória afetiva.

Por sorte, intervalos de gravação são demorados e conversamos por horas. Veio até mais gente ouvir. Com seu vozeirão inconfundível, contou da sua vida como feirante no Brás.

Da marcenaria que a família teve no Jaçanã. E um fato trágico, digno dos folhetins que interpretou —em 1964, no mesmo dia em que seu pai morreu, a mãe teve um AVC que a deixou em coma por 11 anos.
Antonieta Cuoco simplesmente não viu seu filho fazer sucesso. Ela o perdeu sendo descoberto pela TV Tupi, virando mocinho nas tramas da Excelsior e escalado como o primeiro Roque Santeiro da Globo, censurado pela ditadura.

Não estava, sobretudo, entre os que deram 100% de audiência ao lendário capítulo de “Selva de Pedra”. Morreu enquanto o ator estrelava “Pecado Capital”, vivendo seu protagonista até hoje mais lembrado.

Perguntei o que sonhava a mãe do ídolo que para ela ficou inédito. Que planos tinha? Sorrindo nostálgico, relembrou Antonieta lhe pedindo para estudar direito. “Já que você não quer ser médico, Nino.”

Em tempo: “Nino” foi médico pelo menos três vezes na TV. Na novela “Redenção”, fez o primeiro transplante de coração do Brasil —antes do doutor Zerbini, na vida real. Isso sim é ser mito. Melhor do que muito ministro da Saúde.


Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

domingo, 21 de março de 2021

As canções do menino grande


Se Antonio Maria —100 anos na quarta-feira (17)— estivesse entre nós, reagiria à altura a dois insultos recorrentes contra um patrimônio musical brasileiro: o samba-canção. O primeiro, o de que ele seria "o nosso bolero" —um disparate, porque quando o bolero chegou por aqui, nos anos 40, o samba-canção já era velho de pelo menos dez anos. E outro, mais sutil e ainda mais ofensivo, o de chamá-lo de "pré-bossa nova", subentendendo que ele seria um estágio anterior, inferior e preparatório de um gênero musical mais completo.

Maria diria, com razão, que, com sua exuberância melódica, sensualidade rítmica e beleza lírica, o samba-canção não devia nada a ninguém. Em seu apogeu, 1945-65, foi uma das grandes músicas românticas do mundo, no tempo em que todos os países produziam música romântica. E, para provar, Maria poderia exibir sua própria obra como compositor e letrista, sozinho ou com parceiros como Ismael Neto, Vinicius de Moraes, Fernando Lobo, Pernambuco e Luiz Bonfá, e toda ela na voz dos grandes cantores.

É só ouvir "Ninguém me Ama", "Menino Grande" e "Madrugada Três e Cinco", com Nora Ney; "Valsa de uma Cidade", com Lucio Alves; "Canção da Volta", com Dolores Duran; "Suas Mãos", com Maysa; "A Noite é Grande", com Heleninha Costa; "O Amor e a Rosa", com Elizeth Cardoso; "Se Eu Morresse Amanhã" e "Quando Tu Passas por Mim", com Aracy de Almeida; "A Canção dos Seus Olhos", com Sylvia Telles; "Samba de Orfeu", com Luciene Franco; e, claro, "Manhã de Carnaval", com Agostinho dos Santos.

É uma senhora obra, brindada também por Nat King Cole cantando em português "Ninguém me Ama" e "Suas Mãos"; Frank Sinatra, "A Day in the Life of a Fool" ("Manhã de Carnaval") e as dezenas de jazzistas americanos que gravaram "Samba de Orfeu".

Maria morreu de infarto em 1964, aos 43 anos, mas viveu para ouvir tudo isso. E ainda foi casado com Danuza Leão.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 19 de março de 2021

Escapismo

 Morreu a irmã do meu dentista, 54 anos, o pai da minha amiga de faculdade, 64, o vizinho do quinto andar, 31.

Você já viu escova de cabelo vazada? Você sabia que existem lencinhos, com um perfume bem suave, que limpam as lentes dos óculos? Para que serve o secador de cabelo mais caro do mundo? Eu não sei, mas sigo pessoas que podem me explicar. Odeio essas pessoas, não as respeito e fico um bom tempo prestando atenção no que elas ensinam, até anoto algumas dicas.

A prima de um ex-namorado, 36, o filho intubado da funcionária da padaria, 28, a matéria “Parem de afirmar que crianças pequenas não morrem de Covid”.

Azulejos ou painéis artísticos? Escrevo um email para a arquiteta, começando com “prefiro serigrafia sobre decalques”. Pela internet, compro uma caixinha decorada com desenhos de beija-flores e aviso que é pra gente guardar os controles remotos. Lembro que quando eu era pequena os chamava de “muda-muda”.

Aquela matéria “Muitas são as sequelas neurológicas de quem sobrevive”. O irmão de uma grande amiga, depois da Covid, não fala mais coisa com coisa. Meu marido só sente o gosto da comida se antes cheirá-la profundamente. Outro dia o peguei cafungando um inhame e chamei essa fase de “advanced 3”.

Meu pai vai ao supermercado, à farmácia, diz que se ficar trancado “aí é que morre mesmo”. Minha mãe quer ver a neta, mas está com medo de sair. Depressão também mata, meu psiquiatra insiste. Meu pai precisa ir ao hospital fazer os exames do coração, e minha mãe os do estômago. Agendo pra eles e um dia antes os convenço a desmarcar. Não podem ir, seria perigoso. Perigoso é não fazer exames na idade deles. Eu não quero opinar, decidir. Eu sou a filha e fico achando que não deveríamos inverter os papéis.

Às vezes estou trabalhando e penso: “E se eles pegam esse negócio e morrem?”. Preciso parar tudo e deitar. Começo a tremer tanto e ter tanta ânsia de vômito que me tranco no banheiro enrolada numa toalha de banho e fico apertando a toalha e com medo de que abram a porta. Não sei o que estou fazendo nem o que está acontecendo com o mundo.

Compro sabonete de alecrim numa loja online, espirro essência de laranja doce no travesseiro, uso lavanda no difusor de ambiente. Vocês sabiam que a maca peruana devolve a libido de outrora? Até agora nada. Comprei um negócio de silicone que faz omeletes perfeitos no micro-ondas. Separei minhas roupas mais queridas porque me ensinaram no Instagram a fazer um “armário-cápsula”.

Hospital privado pedindo leito para hospital público. Hospital público que já estava em colapso antes de a gente usar essa palavra 30 vezes por dia. Quase 3.000 mortes por dia, e eu sempre acho que “se bobear é mais”. Voltei a ficar deitada no chão do banheiro com as pernas pra cima, esperando a pressão voltar.

Aprendi a chamar de crise de angústia, e não de problema psiquiátrico, assim não volto a me viciar em remédios. Eventualmente vomito com a luz do banheiro apagada, nem é enjoo, é só uma tristeza líquida, como se minha goela precisasse chorar junto com os olhos.

Cremes, muitos. Pra ruga, olheira, pálpebra caída, papada, manchas de sol, dar um viço, acalmar o rosto depois de tanto ácido. Pra lembrar que temos rosto, que esse rosto um dia ainda voltará a cumprimentar com dois beijinhos, a dar as caras, a disfarçar uma alegria insuportável que poderia ser vista como grosseria.

O marido da manicure, 54, a analista de uma amiga, 68, o primeiro jovem a morrer na fila, 22, a imagem daquele bebê chegando no hospital com oxigênio e a mãe dizendo: “Tira só um pouco porque ele quer a chupeta”.

Com um bom lápis preto, não é tão difícil fazer o delineado da Cleópatra.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

terça-feira, 16 de março de 2021

Não vejo a hora de reencontrar semiconhecidos e fazer uma festa para celebrar

 

A chegada da pandemia ao Brasil está fazendo seu primeiro aniversário. Uma data impossível de passar em branco, já que a crise sanitária atinge seu pior momento até agora.

Sobreviver a uma pandemia no berço esplêndido do negacionismo, às margens plácidas do colapso, ouvindo o brado retumbante do pior líder mundial a lidar com o coronavírus não é para qualquer um.

Completamos um ano de saudades, das mais brutais às mais caprichosas. Saudades de pessoas, hábitos, subsistências. Mas entre tantas as variantes, hoje me chamou a atenção talvez a mais esquisita de todas. A saudade dos semiconhecidos.

Um semiconhecido é, em essência, alguém de quem você jamais sentiria falta.

Alguém que você não conhece, mas que conhece alguém que você conhece. Alguém a quem você talvez já tenha sido apresentada, mas vocês fizeram um acordo telepático de fingir que esse momento nunca aconteceu. Alguém que você cumprimenta com as sobrancelhas, quando não prefere atravessar a rua e poupar os músculos da testa.

O semiconhecido é o pesadelo dos tímidos e antissociais. Eu, que não sou tímida nem antissocial, também não era grande entusiasta dessa galerinha. Enchia a boca para dizer que tal bar de esquina em Botafogo era infrequentável pelo excesso de semiconhecidos.

Gente com a qual você não tem nem assunto nem intimidade. Já tentou conversar com um semiconhecido? Se sim, qual foi seu recorde de gafes por minuto? O cara se chama Diego, você falou Diogo. Duas vezes. Você pergunta da namorada, eles já terminaram há dois anos. Vocês se despedem, mas vão para a mesma direção e caminham, em silêncio, lado a lado, enquanto desejam no íntimo que um ônibus desgovernado suba na calçada e acabe de uma vez com aquela agonia.

Sinto mais falta dos conhecidos, sem dúvidas, mas para esses existe a tecnologia. Agora, para um semiconhecido eu não posso fazer uma ligação de vídeo por WhatsApp e responder perguntas retóricas com perguntas retóricas. Eu não tenho o WhatsApp dessas pessoas.

Os semiconhecidos desapareceram do meu radar feito submarinos fantasmas. É como assistir a um filme sem figurantes, você não acredita naquele universo. Quem vai furar a minha bolha agora?

Quando a gente voltar a ter motivos para comemorar, prometo convidar todos os meus semiconhecidos para uma festa.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

domingo, 14 de março de 2021

Só umas palavras

 

As palavras, como as pessoas, têm seus altos e baixos. Às vezes os baixos são tão profundos que elas morrem. Ou ficam hibernando “em estado de dicionário”, como diria Drummond. Poucas causas são mais decisivas pro desmoronamento vernacular do que uma ascensão meteórica. “Glamour” era glamouroso quando eu nasci. Hoje soa como um figurino do Casal 20, esquecido no fundo de um armário. Já “armário” era um termo neutro, que foi ficando mais simpático quando dele pessoas puderam começar a sair. Hoje, ao pensar em armário, penso no hambúrguer do Ritz, na parada gay, num filme do Almodóvar.

Há termos que vão pra sarjeta sem nunca terem subido à ribalta. Depois da ocupação nazista, na França, “colaborador” (collaborateur) ficou para sempre sujo na praça, como todos aqueles que aceitaram sem revolta a invasão.

Em português, “colaborador” também tem sido uma palavra colaboracionista. Ao fingir que os empregados de uma empresa são seus “colaboradores”, o mercado (de bens e de símbolos) ajuda a dar a impressão de que essa selvageria trabalhista é uma Finlândia da Legoland. Não, queridão, o motoboy do aplicativo de entrega que não tem contrato, direitos, banheiro, água ou um salário decente não é “colaborador” da empresa, é um explorado. (“Explorado” é um termo que envelheceu mal. Foi uma vítima colateral da derrocada do PT. Uma pena, porque a exploração continua comendo solta no Brasil e no mundo. Quem sabe se a anulação das condenações do Lula no STF não ajuda como um “rebranding” de “explorado”?).

O politicamente correto, que trouxe grandes avanços, mas parece um tanto zureta nos últimos tempos, tem uma relação particular com as palavras. No início, coibia o uso de termos que soassem ofensivos a certos grupos. Faz todo o sentido. “Negão” ou “negrinho” ou “crioulinho” são usados majoritariamente de forma preconceituosa —começando pelo fato de se escolher a cor para definir a pessoa. Ultimamente, no entanto, estamos chegando num ponto em que nomear um grupo oprimido é ser opressor. Em inglês já não se deve mais dizer “judeus” (“jews”) e sim “jewish people”. É um paternalismo cujo tiro sai pela culatra. Ao proibir “judeus”, os ativistas da língua inglesa dão a entender que há algo de feio em “judeus”.

“Judeus” me leva à diáspora e daí pras línguas latinas: findo o império romano, as palavras pegaram suas trouxinhas e foram morar em outros lugares, ganharam outros status, sentidos e conotações. “Todavía” em castelhano é “ainda”. Em português é “contudo”. Carro em italiano é “machina”. Às vezes, chacoalhando nas viagens, as letras se embaralhavam. O erre de crocodilo, em português, foi parar lá na frente do “cocodrilo” castelhano.

Ou terá sido o contrário?

Um dia resolvi ler o Dom Quixote. Comprei um em castelhano, com notas de rodapé para os termos mais antigos e em desuso. Comecei a ler e me surpreendi ao descobrir que a maioria das notas era pra explicar termos que morreram no espanhol, mas seguem vivos no português. “Yantar”, explicava uma nota, era “cenar” (jantar). Tinha até um “luego luego” do Sancho Pança, com a explicação de que significava “daqui a pouco”. Óbvio, entendi ali: quanto mais vamos pro passado num tronco linguístico, mais nos assemelhamos.

Era só isso, mesmo. Não chego a conclusão alguma sobre qualquer assunto. Eu estava com saudades de escrever uma “crônica, crônica”, sem rumo, sem razão de ser e sem as palavras “Bolsonaro” ou “genocida” ou “desespero”. Quase consegui.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

Mulheres criam filhos sozinhas, acumulam plantões e limpam a casa na folga


Deu no que deu. É a crônica de uma tragédia anunciada: caminhamos para perder 3.000 brasileiros por dia.

Não temos estrutura hospitalar para dar conta dos que procuram os pronto-socorros e superlotam nossas enfermarias e UTIs, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, passando por São Paulo, o estado mais rico.

É a consequência das ações e atitudes da autoridade máxima do país, que desde o início da epidemia fez de tudo para combater as medidas de prevenção, da irresponsabilidade demagógica de muitos governadores e prefeitos incapazes de impor restrições à movimentação nas cidades nos momentos cruciais e do egoísmo fraticida dos nossos conterrâneos que decretaram por conta própria o fim da epidemia, comemorado com desfaçatez perversa nas festas e aglomerações.

Quem teve o privilégio de nunca haver entrado numa UTI com todos os leitos ocupados não faz ideia do inferno vivido pelas equipes de plantão. As emergências e as solicitações são ininterruptas, atender a todas é humanamente impossível quando há 20 ou 30 pacientes em estado crítico e um punhado de
profissionais para cuidar deles.

Enquanto todos se mobilizam para socorrer um paciente em parada cardíaca, outro fica mais grave porque o aparelho de ventilação mecânica deixou de ser ajustado, ao mesmo tempo em que uma senhora inconsciente aspira o próprio vômito e o monitor de um dos leitos dispara o alarme para indicar queda da pressão arterial.

Quem já viveu situações como essas sabe que há horas nas quais nos sentimos tão estressados e impotentes, que dá vontade de sair correndo para nunca mais voltar.

A demanda crescente por plantonistas nas UTIs leva à contratação de profissionais que nem sempre receberam treinamento adequado. Para piorar, os salários baixos obrigam muitos a trabalhar em mais de um hospital.

A insegurança financeira, o medo de contrair o vírus e infectar os familiares, o cansaço físico, a sucessão de noites mal dormidas, a frustração por não conseguir realizar o melhor atendimento e o convívio com a morte onipresente causam impactos psicológicos que nem todos conseguem suportar.

Outro dia, ouvi o desabafo de um colega que, ao sair de um plantão no qual precisou dobrar o turno, para cobrir o horário de um companheiro que havia morrido de Covid, passou por um bar na Vila Madalena lotado de gente sem máscara. “Senti vontade de descer do carro e esbofetear um por um aquele bando de imbecis.”

Nesta semana seguinte à do Dia da Mulher, quero fazer uma homenagem àquelas que estão na linha de frente do atendimento de pacientes com Covid. São enfermeiras, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogas, farmacêuticas, faxineiras, psicólogas, nutricionistas, médicas, atendentes e outras mulheres que constituem no mínimo 60% a 70% da força de trabalho dedicada aos cuidados com os doentes e seus familiares. Não fossem elas, o que seria de nós?

Essas figuras anônimas criam filhos sozinhas, gastam duas horas para ir e mais duas para voltar do trabalho, acumulam plantões em outras unidades de saúde para cobrir as despesas da família, cuidam das lições dos filhos, da saúde dos pais e ainda cozinham, fazem compras e limpam a casa nas horas em que deveriam descansar.

Quando vejo prestarem homenagens aos “médicos da linha de frente”, acho merecido, é claro, mas sinto falta do reconhecimento a essa legião de mulheres que administram os medicamentos prescritos, dão banho nos acamados, levam ao banheiro os que ainda conseguem andar, trocam as roupas de cama e as fraldas dos incontinentes, dão comida na boca, consolam os que se desesperam, seguram as mãos dos aflitos e ainda amparam os parentes inconformados, alguns dos quais transmitiram o vírus ao ente querido.

O que a sociedade oferece em troca dessa generosidade e dedicação aos mais frágeis? Salários baixos, condições precárias de trabalho e de assistência social. Quando perdem a vida por causa do vírus contraído no emprego, os filhos e os que dependem financeiramente delas ficam desprotegidos.

O que leva tantas mulheres a exercer uma profissão que lhes impõe tamanhos sacrifícios, renúncias, tristezas e frustrações para cuidar de pessoas que podem lhes transmitir um vírus capaz de pôr em
risco a vida delas e das pessoas que mais amam é um dos mistérios da alma feminina.


Texto de Drauzio Varella, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 12 de março de 2021

O lulismo é uma doença

 

Ela sabe que não está bem quando a testa começa a pegar fogo. Vontade de meter um L vermelho bem grande na fronte e gritar “Lula livre” na janela. Berra tanto que depois acaba tendo que chupar uma cartela inteira de Benalet.

Um cara do prédio ao lado clama em resposta: “Lula livre, porra!!!”, e ela se apaixona instantaneamente. Pode ser um senhor de 98 anos ou um garoto de 18, mas ela se sente viva. Vem, vacina, que eu quero abraçar todo mundo.

Extasiada, pensa o seguinte: a mão fazendo a arminha deixa de apontar para a cabeça do brasileiro, o indicador passa a mirar o céu, a arma vira um L e transformamos o ultraje em esperança.

Em seus grupos de WhatsApp, os colegas ex-petistas, que assistem à Globonews caçando migalhas progressistas (migalhas que em tempos de fascismo viraram fartos e duradouros banquetes), começam suas ladainhas-clichês que jamais escapam da palavra “autocrítica” e da frase “Bolsonaro só existe porque o Lula o criou”. Ela fica enfurecida: “Ai, gente, vocês não ouviram o Retrato Narrado, o podcast da Carol Pires, não? Quem criou o Bolsonaro foram a falta de afeto, de sonho, de educação. Quem criou os milhares de brasileiros que o elegeram também foi essa trinca macabra. Quem cresce no ódio aprende que destruição é império”. Ela se escuta e sabe que é uma tonta, uma iludida, uma péssima poeta, um ectoplasma da própria juventude que já julgava morta, um eco perdido de diretório acadêmico. Mas que saudade de ser tudo isso. Acreditar é para os inexperientes, e ela está bem tranquila em abrir mão dessa sabedoria sorumbática que vem com a falta de expectativa.

O lulismo é uma doença, porque ela coloca até sombra colorida nos olhos. Ela flerta com o salvador, se arrepia com homens que têm sangue nos olhos e não suporta mais a voz do genocida com sangue nas mãos.

Desejo de assistir a ele de pé, ereta, espalmando o coração, de cantar o hino, de se empolgar com Copa do Mundo, de comer picanha, de achar que a bandeira é de todos e não um reles símbolo de gente tosca e fascista nas redes sociais.

Vai começar a coisa doida remexendo no peito. É burrice, é ingenuidade, é ignorância. O lulismo é uma doença séria, mas é também uma saudade enorme de pobre na faculdade, de empregada doméstica com carteira assinada, de ministro artista, de chanceler intelectual, do Obama dizendo “esse é o cara”, de cinema, teatro, literatura, música. Do futuro, do país decolando em capa de revista e não sendo a escória, a vergonha, a piada, a pena e o pânico internacional.

Tentam dissuadi-la: “Vai ser pior, vai ter golpe, vai ter guerra, vai morrer gente”. Pior? Golpe? Guerra? Morrer gente? Ela pensa: “Francamente, o que as pessoas acham que estão vivendo exatamente agora?”.

O lulismo é uma doença que ataca a memória. Mas e o… e o… e o que mesmo? Coitada. Fica arrepiada quando ele fala da vacina, quando ele fala do respeito às mulheres, quando ele fala em democracia, quando ele fala de caminhar pelas ruas sem ser morto, quando ele fala contra o preconceito. Palavras óbvias e de decência depois de infinitos dias sendo soterrada pela infâmia descabida, pelo descaso inimaginável e pela psicopatia no poder. Ela é burra de dar dó, mas faz tempo não dançava escovando os dentes.

Antes de dormir, ela pede: “Deus, se você existe, se você é brasileiro, dá mais uma chance pra ele, pra mim, pra todo mundo...”. Parece bilhete de criança, mas, vai ver, só assim tem força suficiente pra tirar a gente dessa.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 11 de março de 2021

Maracanã, o sonho encarnado de Mário Filho


Em 1931, o jornalista Mário Filho, jovem de 22 anos, criou o Mundo Sportivo, um jornal dedicado de cabo a rabo ao esporte. De curta duração, o jornal cobriu o campeonato carioca de futebol e patrocinou, em 1932, o primeiro desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro.

No final da década de 1920, o alufá (sacerdote de um culto que misturava o islamismo à devoção aos orixás) José Espinguela já tinha organizado a primeira disputa entre sambistas das escolas que surgiam. Não foi ainda um desfile: o concurso de Espinguela visava julgar apenas os sambas que os compositores das escolas faziam.

O desfile que Mário Filho promoveu contou com a participação de dezenove agremiações, que se exibiram frente a um coreto montado na Praça Onze. Ao promover o concurso, Mário Filho manteve o jornal ativo durante o recesso de verão do futebol. A popularização do jogo e do carnaval, na visão do jornalista, faria deles os dois elementos mais emblemáticos da cultura popular brasileira.

Em 1936, já com fama de ser o craque da imprensa esportiva que surgia, Mário Filho recebeu a ajuda dos amigos Roberto Marinho, seu companheiro de sinuca, José Bastos Padilha e Arnaldo Guinle para comprar o Jornal dos Sports.

O jornal tinha sido fundado também em 1931, pouco depois do Mundo Sportivo, por Argemiro Bulcão e Ozéas Mota. A ideia original era a de valorizar todos os tipos de esportes e estava expressa no logotipo, que unia praticantes de futebol, remo, tênis, boxe, hipismo, golfe, modalidades de atletismo e natação. Em 23 de março de 1936, o jornal foi impresso em cor de rosa pela primeira vez, como o francês L'Auto e o italiano La Gazzeta dello Sport. Em outubro, passou às mãos de Mário Filho.

A construção do estádio que sediaria os jogos da Copa do Mundo de 1950, no Rio de Janeiro, despertou paixões. O vereador Carlos Lacerda, por exemplo, defendia aos berros que a obra fosse erguida na Baixada de Jacarepaguá.

Mário Filho fez dupla com o compositor e vereador Ary Barroso na luta para que o estádio fosse erguido no Maracanã, uma região da cidade acessível não apenas aos habitantes da Zona Sul, mas também aos cariocas de baixa renda, já que ficava pertinho da estação ferroviária da Mangueira.

Como militante da causa, Mário Filho criou no Jornal dos Sports a coluna “A batalha pelo estádio”, insistindo em uma construção que incluísse o que chamava de “grandes massas”: pobres, ricos, brancos, pretos, homens, mulheres e crianças.

Grande estimulador do esporte de massa, Mário inventou a sigla Fla x Flu, criou os Jogos da Primavera, os Jogos Infantis, os torneios de peladas no Aterro do Flamengo e o Torneio Rio-São Paulo de futebol. Fazia todo sentido, portanto, que o estádio por ele defendido fosse fundamentalmente popular.

Além de ser um homem de ação –os amigos desconfiavam que ele não dormia nunca– Mário Filho foi um escritor de mão cheia. Livros como “O Negro no Futebol Brasileiro”, “Histórias do Flamengo”, “Viagem em Torno de Pelé”, “Copa do Mundo de 62”, “Infância de Portinari" e as crônicas reunidas em “Sapo de Arubinha” colocam o autor na prateleira de cima das nossas letras.

Mário Filho morreu aos 58 anos, em 1966. O radialista Waldir Amaral foi o primeiro a sugerir que o nome do jornalista fosse incorporado ao do estádio, proposta que logo recebeu adesões entusiasmadas e se concretizou.

Por tudo isso, a ideia de tirar o nome de Mário Filho do estádio para homenagear Pelé é inconcebível. Pelé merece todas as homenagens, sem dúvidas. No bairro do Maracanã mesmo, pertinho do estádio, existe uma praça chamada Presidente Emílio Garrastazu Médici. Fica a sugestão: tirem da praça o nome do ditador e coloquem o do Rei do Futebol.

Os golpes que o Maracanã sofreu nos últimos tempos foram terríveis. O estádio virou uma arena elitizada, a marquise, uma obra-prima da nossa arquitetura, foi destruída. É difícil diferenciar o Maracanã do estádio de Kiev, na Ucrânia. Agora vem a ideia de se apagar da memória do lugar o nome de Mário Filho, homem que passou a vida cerzindo a cidade que tantos preferem retalhar.

O Maracanã foi a encarnação do sonho de um país fraterno, que hoje parece se esfarelar em ódio. Um sonho popular feito de pedra, cimento, grama, paixão e gol. Mário Filho foi o maior dos seus sonhadores.


Texto de Luiz Antonio Simas, na Folha de São Paulo