Cantado em verso e prosa, o amor entre humanos, quando correspondido, é das maiores fontes de satisfação que se tem notícia. Seja fugaz ou duradouro, paixão ou amor, com ou sem sexo, trata-se de uma experiência da qual ninguém sai ileso.
Não é de se estranhar que no auge do encontro amoroso a realidade da morte se apresente da forma mais cristalina para os amantes. O orgasmo, também chamado de “petite mort”, revela como o máximo do prazer flerta com o fim —o apagamento da consciência.
A jura de amor tem sempre algo de despedida, pois cada segundo no qual se desfruta da presença do outro é um segundo a menos do tempo que resta. O desejo se renova na exata medida do temor de perder o amado.
Nos casais, o amor é o que pode sobrar, quando acaba o chantilly da paixão. Por vezes, o amor erótico muda o destino de uma amizade, transformando, de repente, o que era casto e fraterno em sexo e espanto, que pode ser seguido de arrependimento ou gostinho de quero mais. O amor a qual me referi até aqui é herdeiro do ideário romântico que nasce com o homem moderno.
Mas o amor é bem menos circunscrito a um período histórico, sendo a base das relações humanas. Basta citar o amor fraterno, o amor filial, o amor espiritual, cada um com seu grau de apaixonamento próprio, ainda que apartados do intercurso sexual.
Os rituais fúnebres da pré-história humana revelam formas de honrar e lamentar a perda de pessoas queridas e são os primeiros indícios da capacidade humana de simbolizar a morte e o amor, na forma de lamento por sua perda.
O amor transferencial proposto por Freud no dispositivo psicanalítico, por sua vez, trata de um desencontro previsto e que não pode prescindir de um bom e ético manejo. O paciente ama no analista algo que ele mesmo —paciente— deposita lá. O analista sustenta esse equívoco sem se permitir a impostura de acreditar que o amor que o paciente lhe transfere diga respeito aos encantos do analista.
Como o próprio nome diz, é afeto transferido de outrem e cabe ao analista abster-se de corresponder-lhe.
Nada impede que reconheçamos no trabalho e na pessoa do analista seu valor, e que o amor decorrente da gratidão e da admiração surjam ao longo do tratamento. Mas se trata de afeto que não pode ser confundido com o que o paciente deposita de excesso na relação.
Breuer, parceiro de Freud na pré-história da psicanálise, escorregou na casca da banana deixada por Anna O., a musa da histeria e paciente fundadora do dispositivo analítico. Acreditou que o amor da jovem paciente por ele fosse devido a seus irresistíveis dotes de senhor barbudo. Freud, de sua parte, foi impecável no quesito abstinência. Lacan foi bem mais questionável como podemos ler no delicioso “A Vida Com Lacan” (Zahar, 2017) da psicanalista Catherine Millot —paciente e amante do analista francês.
O amor romântico foi criado e assim poderá desaparecer, como seu declínio vem apontando. Não vejo grandes problemas nisso, inventa-se outras formas.
O mesmo não se pode dizer do amor fraterno, cujo declínio aponta para o fim da civilização. De fato, de todos os amores, o que mais carecemos hoje é esse último.
Nem políticos, nem soldados, nem cientistas… os heróis do nosso tempo são as pessoas ainda capazes de amar o outro, o desconhecido, o anônimo. O resto é o horror da indiferença. O resto é contar pessoas como se fossem números: até ontem, 312 mil.
Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo.
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