sexta-feira, 5 de março de 2021

Mar

 Como presente de aniversário, meu marido me pede para ver o mar. “Não tem nenhum cabimento”, eu digo enquanto faço a mala. Protetor solar tem o perfume de várias idades bobas acariciando uma carne cansada, e eu me pergunto quando foi a última vez que fomos felizes assim. A canga tem aquele tecido mole e geladinho, e eu sinto pena ao lembrar de mim, há dois anos, comprando logo um par, com estampas diferentes. Saudade daquela sensação de que a vida ainda vai durar muito e para muita gente.

Parece que assisto ao mar do passado; parece que estou dopada para poder viajar em outra memória; parece que minha corcunda é um anteparo escondido que ostenta, como se eu fosse um cartaz de circo, uma fantasia de corpo aprumado. Minha cara de pau descola na primeira chuva.

Tento focar, “olha, o mar”, mas não mereço estar ali. Ninguém merece. E o mar não merece ter que dançar para nossa hipocrisia.

Parece que o sol é uma luz que vem de uma loja cheia de televisores mostrando que o país acabou, mas o estabelecimento está vazio e o óbvio é dito para o vácuo. A praia tem pedras que foram alisando com o tempo, e as metáforas mais clichês sempre me emocionam quando está quente demais para meu cinismo. Mas agora estou ocupada com a terra embaixo dos meus pés e com as pessoas debaixo da terra e comigo sobre essas pessoas —e me sinto mais gelada do que a última onda que me pegou de surpresa (e eu não consegui rir daquele jeito “tudo bem, é férias”, porque o horror fica respingando salgado e ardido dentro dos olhos da minha filha).

Entramos na água gelada, mas mar tem a ver com triunfo, esperança, gargalhar até fazer xixi quando somos pequenos. Se eu tento sorrir, pareço as minhas amigas que exageraram no preenchimento do bigode chinês e se tornaram baiacus medrosos na mão do inimigo.

Em dezembro eu vi o mar depois de muito tempo e senti que íamos virar o jogo. Já, já isso acaba. Vírus, verme, fibromialgia, depressão. Mas o desespero voltou e, como dizem para um mar de coisas: quando volta, é sempre pior.

Minha filha percebe que não estou bem e pede pra irmos embora pra casa. Eu queria sustentar mais um pouco, por ela, por ele, mas essa novidade de que dias bonitos parecem despedidas é pesada até para os alienados que acreditam resolver tudo com remédios para enjoo.

Mar de gente na praia, sem máscara. Eu estou isolada em um canto, achando que sigo “todos os protocolos”. Eu não deveria estar ali. Eu tento fazer um castelo, porque meu marido me pediu para ver o mar e ele já me deu tantos presentes bonitos. Eu nunca vivi em um país tão triste em um ano tão triste. Eu não tenho lembrança de desgraças que duraram tanto tempo e pra tanta gente e com a sensação de que demoraria demais pra passar. Cada página de jornal é um mar de piores coisas do mundo. Não há notícia que não seja um tsunami. Se a gente se importar demais, a gente morre cedo. Se a gente se importar de menos, a gente morre cedo. Nós com plano médico morremos depois, e isso, quando temos um pouco de humanidade, vai nos matando aos poucos.

Mar de gente agonizando, mar de gente morta, mar de corpos, mar de negacionistas, mar de assassinos, mar de pessoas odiosas que jamais imaginei que pudessem ser tantas, mar de porcentagem de gente horrível que ainda dá “ótimo” ou “bom” para aquele desgraçado, mar de panelas que não servem pra nada.

O que dá pra fazer? O que AINDA dá pra fazer? Quando isso vai acabar? Por que faço perguntas insistentes e repetitivas como se eu fosse uma criança quando envelheço mil anos a cada capa de jornal?


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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