As palavras, como as pessoas, têm seus altos e baixos. Às vezes os baixos são tão profundos que elas morrem. Ou ficam hibernando “em estado de dicionário”, como diria Drummond. Poucas causas são mais decisivas pro desmoronamento vernacular do que uma ascensão meteórica. “Glamour” era glamouroso quando eu nasci. Hoje soa como um figurino do Casal 20, esquecido no fundo de um armário. Já “armário” era um termo neutro, que foi ficando mais simpático quando dele pessoas puderam começar a sair. Hoje, ao pensar em armário, penso no hambúrguer do Ritz, na parada gay, num filme do Almodóvar.
Há termos que vão pra sarjeta sem nunca terem subido à ribalta. Depois da ocupação nazista, na França, “colaborador” (collaborateur) ficou para sempre sujo na praça, como todos aqueles que aceitaram sem revolta a invasão.
Em português, “colaborador” também tem sido uma palavra colaboracionista. Ao fingir que os empregados de uma empresa são seus “colaboradores”, o mercado (de bens e de símbolos) ajuda a dar a impressão de que essa selvageria trabalhista é uma Finlândia da Legoland. Não, queridão, o motoboy do aplicativo de entrega que não tem contrato, direitos, banheiro, água ou um salário decente não é “colaborador” da empresa, é um explorado. (“Explorado” é um termo que envelheceu mal. Foi uma vítima colateral da derrocada do PT. Uma pena, porque a exploração continua comendo solta no Brasil e no mundo. Quem sabe se a anulação das condenações do Lula no STF não ajuda como um “rebranding” de “explorado”?).
O politicamente correto, que trouxe grandes avanços, mas parece um tanto zureta nos últimos tempos, tem uma relação particular com as palavras. No início, coibia o uso de termos que soassem ofensivos a certos grupos. Faz todo o sentido. “Negão” ou “negrinho” ou “crioulinho” são usados majoritariamente de forma preconceituosa —começando pelo fato de se escolher a cor para definir a pessoa. Ultimamente, no entanto, estamos chegando num ponto em que nomear um grupo oprimido é ser opressor. Em inglês já não se deve mais dizer “judeus” (“jews”) e sim “jewish people”. É um paternalismo cujo tiro sai pela culatra. Ao proibir “judeus”, os ativistas da língua inglesa dão a entender que há algo de feio em “judeus”.
“Judeus” me leva à diáspora e daí pras línguas latinas: findo o império romano, as palavras pegaram suas trouxinhas e foram morar em outros lugares, ganharam outros status, sentidos e conotações. “Todavía” em castelhano é “ainda”. Em português é “contudo”. Carro em italiano é “machina”. Às vezes, chacoalhando nas viagens, as letras se embaralhavam. O erre de crocodilo, em português, foi parar lá na frente do “cocodrilo” castelhano.
Ou terá sido o contrário?
Um dia resolvi ler o Dom Quixote. Comprei um em castelhano, com notas de rodapé para os termos mais antigos e em desuso. Comecei a ler e me surpreendi ao descobrir que a maioria das notas era pra explicar termos que morreram no espanhol, mas seguem vivos no português. “Yantar”, explicava uma nota, era “cenar” (jantar). Tinha até um “luego luego” do Sancho Pança, com a explicação de que significava “daqui a pouco”. Óbvio, entendi ali: quanto mais vamos pro passado num tronco linguístico, mais nos assemelhamos.
Era só isso, mesmo. Não chego a conclusão alguma sobre qualquer assunto. Eu estava com saudades de escrever uma “crônica, crônica”, sem rumo, sem razão de ser e sem as palavras “Bolsonaro” ou “genocida” ou “desespero”. Quase consegui.
Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo.
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