O governo federal é diretamente responsável por uma crise humanitária no país, decorrente do agravamento sem precedentes da crise sanitária internacional, com capacidade de ameaçar o resto do mundo. Como lidar com isso?
Não será tarefa fácil. Muitos imaginam o homem no Palácio do Planalto como um tirano enlouquecido que sequestrou a sociedade brasileira. Porém, não há estelionato eleitoral no atual governo. Todos que o elegeram, ou votaram nulo ou branco, estavam dispostos a pagar um preço para atingir objetivos políticos específicos, que, então, imaginavam pudessem ser compatibilizados.
Eu listo: eliminação do PT como “player” político; políticas neoliberais para os meios empresariais e financeiros; fortalecimento de denominações religiosas fundamentalistas que acreditam num Deus de ira e que se apressaram em ver no vírus um agente d’Ele; fortalecimento e inimputabilidade das corporações militares e, dentro delas, de práticas de tortura e extermínio; tolerância para o exercício de práticas antiecológicas, machistas, racistas e homofóbicas seculares, hoje criminalizadas com base na Constituição Federal de 1988.
Em nenhum caso a razão do voto e do apoio foi desinformação ou déficit cognitivo, mas leituras situadas da realidade que apostaram no horror, sintetizado no gesto de campanha de atirar em alguém com uma arma, porque acreditaram que não seriam atingidos. E não, o combate à corrupção não foi essencial para a eleição do deputado do baixo clero para a Presidência da República.
O bem recebido retorno de Lula ao jogo político abre alguma esperança de que os pressupostos que uniram tal frente macabra já não estejam mais dados. Porém, para que possamos superar de forma mais rápida o genocídio em curso, é preciso saber se a conta ficou realmente alta demais e para quem.
A catástrofe agora anunciada assustará a elite política de Brasília? Temerá o centrão ser responsabilizado como cúmplice de crime contra a humanidade denunciado nos tribunais internacionais? O “mercado”, na pele de jornalistas, “Faria Limers” e investidores que permanecem no país, temerá, ao menos, o colapso da rede privada de saúde?
Isso vale para as elites, mas também para os setores populares que caminharam para a extrema direita. Nas periferias, mais tragédia, muitas vezes apenas reforça os cultores da intolerância, bem como o poder paralelo de grupos paramilitares.
Talvez a fome, mais que a peste, possa fazer este eleitor conservador perceber a morte em massa de brasileiros incentivados pelo presidente a se aglomerarem e a não usarem máscaras, sem vacina e sem auxílio emergencial, como a necropolítica que é. Talvez não.
A princípio, o caminho de volta, se houver, passa por 2022. Será, e já está sendo, muito doloroso.
Ao finalizar esse artigo, visitei o site do Memorial Inumeráveis, iniciativa de 2020. Quando não temos saída, precisamos, ao menos, dizer o nome dos nossos mortos.
Texto da professora Hebe Mattos (Universidade Federal de Juiz de Fora) na Folha de São Paulo.
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