História do comunismo na China é muito recente para ser escrita
Didi Kirsten Tatlow
Em Pequim (China)
No fim, os silêncios da oficial “História do Partido Comunista Chinês, 1949-1978”, falam mais alto do que suas quase um milhão de palavras.
O extraordinário sobre essa obra de dois volumes, publicada em janeiro e amplamente discutida este mês durante a celebração do aniversário de 90 anos do partido, é que, embora contenha alguns novos detalhes relativos a acontecimentos controversos nas primeiras três décadas de governo comunista, um tema gigante é ignorado com um silêncio quase total: as mortes de dezenas de milhões de pessoas por conta de campanhas políticas.
“Não menos do que 60 milhões”, disse Frank Dikötter, historiador da Universidade de Hong Kong que está escrevendo um livro sobre os primeiros anos da República do Povo.
A nova história é importante para o partido porque ela diz a 82 milhões de membros em que acreditar, à medida que o partido procura aumentar sua credibilidade numa era em que múltiplas fontes de informação estão disponíveis online.
Muitos historiadores do partido dizem que a nova história é mais “objetiva” do que os relatos anteriores.
De alguma forma sutil, isso é correto, percebe o leitor, depois de assimilar suas 1.074 páginas.
Um breve parágrafo incomum num relato da Campanha Anti-Direitista de 1957 descreve protestos generalizados, greves e saques no final de 1956, à medida que as pessoas enfrentavam falta de alimentos e itens básicos, resultado das requisições de grãos forçadas pelo estado e políticas industriais fracassadas.
A campanha que se seguiu, ordenada por Mao Tsé-Tung e organizada por Deng Xiaoping, tinha como objetivo prevenir um levante como a revolta húngara de 1956. Mais de 550 mil intelectuais foram taxados de “direitistas”. Demitidos de seus empregos, torturados, enviados para campos de trabalho, muitos morreram. Famílias inteiras foram punidas.
Numa nota de rodapé, a história diz que “98%” das vítimas da campanha foram acusadas equivocadamente.
Apesar disso, o veredito continua o mesmo: a eliminação fatal foi “necessária e correta” para implementar totalmente o socialismo.
O papel desempenhado por Deng, que depois se tornou o líder supremo da China, é maquiada. Deng é reverenciado aqui, e oficialmente recebe o crédito por ter tirado o país da pobreza com reformas econômicas pragmáticas depois que a Revolução Cultural terminou em 1976.
“O livro não diz onde Deng Xiaoping errou, porque isso está muito próximo”, disse um historiador do partido, falando sob condição de anonimato porque não tem autorização para falar com jornalistas.
Num detalhe raro e revelador, contido num relato do Grande Salto Adiante de 1958-62, a campanha de coletivização e industrialização forçada de Mao, que precipitou a pior fome da história moderna chinesa, o livro diz que a população da China caiu em 10 milhões de 1959 a 1960.
“Isso é apenas um ano, e não leva em conta o crescimento natural da população na época”, disse o historiador. A população da China de mais de 600 milhões estava crescendo rapidamente, com uma taxa de natalidade de cerca de seis filhos por mulher.
Entre dois e três milhões de pessoas foram mortas em 1949-51, acusadas de serem proprietários de terras, bandidos, espiões do Kuomintang ou contrarrevolucioários, diz Dikötter, citando sua própria pesquisa. Nenhum número é mencionado no livro, embora os objetivos políticos da reforma agrária e de outras campanhas sejam descritos em algum detalhe.
Mao é retratado na história como alguém que cometeu erros “esquerdistas”, como a Revolução Cultural de uma década. Geralmente, entretanto, a narrativa caracteriza suas políticas como “necessárias” e culpa os excessos em “expansões” equivocadas, sem elaborar mais longamente.
Acima de tudo, os aspectos mais “objetivos” que os historiadores do partido enaltecem são simplesmente muito limitados para serem significativos, disse a historiadora Zhou Zun, também da universidade de Hong Kong.
“É uma espécie de ilusão, mostrar que eles estão fazendo um esforço para contar a verdade quando sabemos que eles não estão”, disse ela. “É algo que o Partido Comunista faz muito bem.”
Os historiadores do partido na China são servidores do estado, presos entre a verdade histórica e a realidade política, dizem Zhou e Diköter. Não ofender as dezenas de famílias poderosas que, coletivamente, governam a China, também é uma grande preocupação.
“É um incrível ato de equilíbrio. É como ser uma bailarina o que eles fazem”, disse Dikötter.
Isso foi mostrado no tortuoso processo de escrita. Os historiadores passaram quatro anos no esboço original, começando em 1994.
Depois disso, “tiveram que buscar a opinião de 200 a 300 pessoas”, disse o historiador do partido. Isso levou outros 12 anos, e muitos outros esboços. Pelo menos 15 historiadores que trabalhavam no projeto morreram nesse tempo.
O presidente Hu Jintao tinha uma equipe de pesquisadores buscando fatos ou interpretações indesejáveis. Assim como o vice-presidente Xi Jinping, o homem esperado para suceder Hu e cujo pai, Xi Zhongxun, foi removido nos anos 60 antes de retornar.
Os departamentos do governo, incluindo a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, que supervisiona políticas econômicas e sociais, e o Ministério de Exterior avaliaram o texto. Bem como os militares.
Espelhando a forma como o partido e o governo funcionam hoje, “foi um esforço coletivo”, disse o historiador.
Diferente de publicações histórias anteriores do partido, quando Deng ou o ideólogo do partido Hu Qiaomu tomaram as decisões, desta vez “não havia nenhuma pessoa que viveu durante aqueles anos que tivesse o poder de decidir” o que era publicável, disse o historiador. Uma história anterior, que cobriu os anos de 1921 a 1949, foi publicada em 1991. Hu morreu em 1992, Deng em 1997.
Os historiadores do partido sentiram que negociaram com sucesso um projeto extraordinariamente delicado mas dizem que ele deixou muitos na sociedade insatisfeitos.
“Tanto a esquerda quanto a direita estão descontentes”, disse o historiador do partido.
“A esquerda diz: 'vocês estão negando o Partido Comunista'. A direita diz: “vocês ainda não disseram a verdade sobre os erros'”, disse ele. “No que diz respeito às histórias oficiais, cada dinastia normalmente tenta escrever a história da dinastia anterior.”
“Na China, não se escreve história contemporânea. Quanto mais próximos os tempos, mais difícil é. O próximo projeto, de 1978 a 2011, será ainda mais difícil”, ele prevê.
O trabalho já começou.
Mas se levou 16 anos para produzir um relato dos primeiros 29 anos de governo comunista, pela lógica, o relato ainda mais difícil de ser escrito dos 33 anos subsequentes não sairá antes de 2030.
Tradução: Eloise De Vylder
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