sexta-feira, 29 de julho de 2011

Plurais peculiares


Plurais peculiares

Sírio Possenti
De Campinas (SP)
As regras que comandam a concordância de número parecem óbvias, mas não são. Se a questão fosse puramente sintática, a regra seria mecânica: dado um núcleo nominal, a forma dos outros elementos do sintagma e a do verbo seriam completamente previsíveis. Mas as coisas não são assim. Tanto o "povo" quanto os escritores seguem outros caminhos, que podem ser explicados, o que importa mais do que simplesmente corrigir.
Um dos casos recentes que chamam a atenção é a presença de artigos (também verbos, na verdade) singulares com nomes plurais. Os dois que eu mais ouço são "A Casas Bahia está..." em propagandas, e "O Estados Unidos é/vai...", em debates, geralmente na boca de personalidades com alta escolaridade: embaixadores, cientistas políticos, economistas e, obviamente, jornalistas.
Alguém poderia dizer que, no caso da rede de lojas, a explicação estaria relacionada ao fato de tratar-se de uma rede popular. Acontece que as estruturas são exatamente iguais neste caso e no outro, o dos grã-finos. Nada mais óbvio, portanto, do que procurar uma explicação semelhante. O que as explica (ou condiciona sua ocorrência) é o fato de Casas Bahia e Estados Unidosserem percebidos como um só objeto. O fato de que sejam sintagmas "plurais" não é suficiente para fazer com que este traço sintático predomine sobre o semântico: trata-se de uma rede de lojas e de um país (é claro que a outra forma de concordância, a dita padrão, se explica sintaticamente).
Também se observam com altíssima freqüência fatos como "Um casal feliz tem a vida transformada em um dia que parecia promissor. Eles estão indo passar um final de semana em um chalé do chefe" (sinopse de "Encurralados") e "Grupo é enviado ao passado para buscar cientista, mas ficam presos na França de 1357" (sinopse de "Linha do tempo"). No programa "Painel", da GN, ouvi "Como a sociedade inglesa está vendo o Murdoch? Como eles reagem?".
Nestes últimos dados, o processo vai aparentemente na direção contrária da dos anteriores: agora, formas no singular são analisadas como plurais. Mas aqui também a semântica predomina sobre a sintaxe: Um casal, grupo e sociedade inglesa são percebidos como plurais (mais de um). A forma plural pode estar marcada na retomada anafórica (grupo / eles) ou na forma do verbo (grupo /ficam). Observe-se como o segundo exemplo é particularmente interessante: o grupo é enviado (dois singulares) / ... ficam (um plural). Veja-se que é enviadoestá ao lado do nome e ficam está distante. Distância é um fator crucial para muitos casos.
A propósito, veja-se o seguinte comentário de Bechara sobre a questão, na mesma gramática que comentei na semana passada:
"Se houver, entretanto, distância suficiente entre o sujeito e o verbo e se quiser acentuar a idéia de plural do coletivo, não repugnam à sensibilidade do escritor exemplos como os seguintes: Começou então o povo a alborotar-se, e pegando do desgraçado cético o arrastaram até o meio do rossio e aí o assassinaram, e queimaram, com incrível presteza (Alexandre Herculano)". (Bechara, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37a Edição, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 1999, p. 555.). "O povo... o assassinaram, e queimaram". E é Herculano. E as formas plurais estão distantes do sujeito.
Analisando apenas os fatos sintáticos, não há como saber se o autor desejaacentuar a idéia de plural. Mas é clara a presença de um termo coletivo com o qual o verbo concorda no singular quando está próximo e no plural quando está distante. O gramático invoca também um critério de gosto (não repugnam ao escritor). Um analista dos fatos poderia dizer que supor que o autor quisacentuar uma idéia e que existe ou não repugnância a alguma construção são critérios subjetivos. Objetivamente, tem-se um verbo no plural apesar de o sujeito estar no singular - e o sujeito é um coletivo e está distante do verbo.
Antes de fornecer o exemplo em questão e explicá-lo, Bechara afirmara que, em casos como esses, "a língua moderna impõe apenas a condição estética, uma vez que soa geralmente desagradável ao ouvido construção do tipo: O povo trabalham ou A gente vamos". Soa desagradável ao ouvido de quem?, poderíamos perguntar. De novo, trata-se de um critério que não valoriza a sintaxe, mas o gosto ou o status do falante e do ouvinte/leitor.
As gramáticas, como se sabe, estão cheias de supostas exceções: concordâncias ideológicas e silepses em uma lista, concordâncias com predicativos (isso são ossos do ofício, tudo são flores) em outra. E poucas tentativas de explicação! Ou duas, precárias: uma, que não é de fato uma explicação: escritores as usaram; outra: soa ou não soa bem - e nunca se define o tipo de ouvido!


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